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Com os chineses temos de ser amigáveis mas firmes. Não se pode pôr de cócoras

A sala no segundo andar da sede da Fundação Oriente, um antigo armazém de bacalhau em Alcântara, está decorada com peças vindas do restaurante do mítico Aviz, o hotel onde Calouste Gulbenkian almoçava quando viveu em Lisboa. “É tudo da época. Dos anos 1940 e 1950. Repare naquela índia do Brasil”, sublinha Carlos Monjardino, olhando para uma estátua que me parece de madeira pintada, nua, com dourados a sobressaírem no corpo bronzeado.

O presidente da Fundação Oriente, uma gigante com um património de 285 milhões de euros, preferiu almoçar aqui do que num restaurante. E foi interessante conversar (sobretudo) sobre a China do século XXI num ambiente que mais lembrava o Portugal desse tempo da Segunda Guerra Mundial, visto como um oásis de paz e por isso refúgio do magnata arménio. “Foi mesmo a sorte grande que nos saiu”, nota Monjardino, referindo-se à Fundação Gulbenkian.

Também a Fundação Oriente foi uma espécie de sorte grande para Portugal, nascida do contrato de jogo que Monjardino negociou quando era número dois do governo de Macau, em meados da década de 1980. Mas já lá iremos. Antes do almoço conversamos um pouco noutra sala, sentados no sofá debicando pinhões e passas e bebendo um whisky (o anfitrião) e uma água com gás.

“Bebo sempre antes do almoço um JB com gelo. E à noite, sobretudo no verão quando ando de barco, um gin tónico”, explica o homem que é conhecido como filantropo, continua a ser associado a Macau e ao PS e que fez carreira como banqueiro. “A 1 de agosto celebrei 50 anos de atividade”, diz-me, aproveitando para se queixar de que lhe começam a cansar as pernas. Tem 73 anos.

É o mote para um resumo da vida de Monjardino pré-Macau, recuando a uma meninez que graças a um avô famoso (o médico Pulido Valente) até lhe deu a oportunidade de perguntar a Gulbenkian quanto dinheiro tinha (“não sabia!”) e noutra ocasião de conhecer Mário Soares numa visita a Caxias, onde um tio era preso político. Conta que nasceu em Lisboa, em 1942, no Largo do Carmo. Pergunto-lhe se foi em casa. “Não. Numa clínica que ali havia. Hoje é uma clínica veterinária, imagine lá”, responde, revelando um sentido de humor que estará presente ao longo do almoço. Admite que vem da alta burguesia, “mais da parte do pai, menos da da mãe”, e que teve “uma infância dourada”.

Nunca sentiu a falta de nada, apesar de ter memória do racionamento nos anos a seguir à Guerra. Andou num colégio inglês e também no Liceu Francês. Depois foi para Inglaterra estudar. “Dava-me jeito por causa da tropa”, admite. Mas se queria inscrever-se em Arquitetura Naval, acabou por em Londres fazer um curso de Comércio Internacional e ainda “aquilo que costumamos traduzir por Curso Superior de Altos Estudos Comerciais”. Foi duas vezes à inspeção militar e ficou livre. “Tenho asma.” Ainda hoje pensa no Ultramar e nos que para lá foram combater. Também viveu alguns anos em França.

Monjardino puxa de um cigarro. Diz que tenta não ir além dos 15 por dia, nem sempre com sucesso. E prossegue com as memórias. Quando falámos do Ultramar, recordou que chegou a ser cônsul da Guiné. E do Haiti. No tempo dos Duvalier, interrogo, surpreendido. Sim. E a explicação é que lhe passaram um escritório que importava adubos belgas e de caminho também a representação honorária do Haiti em Lisboa. Mas uma viagem de dois dias às Caraíbas, umas miniférias no meio de um curso de gestão bancária nos Estados Unidos, tiraram-lhe quaisquer dúvidas. “Fui a um casino e ganhava sempre. Comecei a achar aquilo estranho. Parei nos 1200 dólares. Percebi que estavam a fazer tudo para monsieur le consul ganhar. Comprei uma prenda para a minha mulher e vim-me embora. E depois acabou isso do cônsul.”

Passamos para a sala onde almoçaremos. Monjardino tem um botão branco à mão que usa para chamar alguém sempre que precisa. Mesa para dois. Toalha de linho. Loiça antiga e talheres de prata. O senhor Gulbenkian apreciava o que era bom, basta pensar na coleção de arte que legou a Portugal. É assim quase como se estivéssemos no antigo Aviz que falamos de mais um tema pessoal, os muito falados oito filhos adotivos, sempre referidos nos perfis do presidente da Fundação Oriente: “Assumi a tutela de oito crianças. Grupos de irmãos. E foram criados numa casa em Pedrouços cedida pela Santa Casa. Hoje são todos adultos e a mais velha tem 36 anos. Tenho mais contacto com uns do que com outros”. Esta ideia de tutelar miúdos pobres foi partilhada pela mulher, Ana Sofia, assistente social, e ambos criaram a Fundação Monjardino, que continua a apoiar crianças. Monjardino entretanto enviuvou de Ana Sofia, mãe dos três filhos mais velhos. Hoje tem também uma filha adolescente.

Queijo fresco para barrar em pequenas tostas. E meia meloa para entrada. É hora de entrarmos também a sério no tema China, com a chegada a Macau em 1986 por indicação de Soares, presidente da República. “Há duas coisas que dizem de mim e que não são verdade: que sou militante do PS e que sou da maçonaria. Mas sou demasiado irreverente para estar num partido e o meu clube é o Sporting.” Uma vez mais o humor. E isto de não querer estar às ordens de ninguém causou-lhe “dissabores” em Macau, sublinha. “Achavam que era tudo favas contadas. Por isso houve no PS quem fizesse campanha para que eu não fosse governador, que era o que as forças vivas de Macau queriam. Mas eu já tinha dito que não queria o cargo.”

É servido medalhão de vitela em molho de café, com legumes salteados e batatas fritas. Tinto? Monjardino prefere desta vez branco, pela frescura. Um Stanley Chardonnay de 2012, vinho regional de Lisboa, produzido pela Fundação Stanley Ho, magnata do jogo e amigo. “Quando souberam que ia para Macau alguém se ofereceu para organizar um almoço para ser apresentado a Stanley. Aceitei. Mas quando nos sentámos disse-lhe: “Olhe que a gente já se conhece” e recordei-lhe que 20 anos antes a minha sogra ligara a pedir-me que mostrasse a Quinta da Marinha a um grupo de investidores chineses. Era um deles.”

Monjardino reclama obra em Macau, do lançamento do projeto do aeroporto à construção de outras infraestruturas que hoje, 17 anos depois da devolução à China, contribuem para o êxito da capital mundial do jogo, com casinos mais cheios do que Las Vegas. Tudo graças ao contrato do jogo que como secretário para a Economia, Finanças e Turismo (e também governador substituto) negociou. Esse contrato de jogo foi a base da Fundação Oriente, nascida em 1988, que “recebia 1,6% da receita bruta, até acabar em 1996, por pressão chinesa, com o argumento de que a sede era em Lisboa”.

Diz admirar muito a China. Também a gastronomia de lá, apesar de não ter sido a escolha para este almoço. Elogia o restaurante do Casino Estoril, também o Hong Kong perto da Almirante Reis e ainda um outro em Oeiras, o Boa Sorte. Usa a sua experiência em Macau para fazer um alerta: “Caí lá de paraquedas. Tentei com humildade perceber aquilo.” Sim, uma terra chinesa governada por Portugal há mais de 400 anos só pode ser um desafio, digo. “Dei-me bem com eles porque comecei a percebê-los um pouco. Por exemplo, trabalham dia e noite e as coisas aparecem. Como eu não deixava também que as coisas adormecessem nos gabinetes, funcionou.” Acrescenta ainda que beneficia Portugal a simpatia que a China tem pelos primeiros europeus a lá desembarcarem, no século XVI: “Os chineses têm uma maneira de falar connosco que é sempre de velhos amigos, eles dão muita importância ao tempo.”

Para sobremesa fruta ou gelado do Santini. Maracujá e framboesa, escolhe o anfitrião. Para mim só framboesa. Continuamos com a China, já segunda economia mundial e que Monjardino acredita ter “condições para ser, de facto, uma potência mundial equivalente aos Estados Unidos”. Acredita que o regime de partido único se vai manter pelos menos enquanto as pessoas sentirem que as suas condições de vida melhoram todos os anos. “O que eles tiveram foi de estabilizar aquilo. E por isso o atual presidente está com a mão bastante forte, em termos das corrupções, mas a nível da economia têm todas as condições para o sucesso, inclusivamente com o mercado interno fortíssimo.”

Terminamos ambos a refeição com um café. Monjardino regressa ao tema da boa imagem de Portugal na China, uma onda de simpatia que lamenta não termos condições para aproveitar: “Nós somos muito especiais para a China, só que uma coisa é sermos especiais para a China em termos de a China nos aceitar particularmente bem, que nos aceita muito, muito bem, outra coisa é nós termos coisas, ou setores, para propor joint ventures com a China, porque temos muito pouco. O nosso tecido empresarial é o que é, não é outro. Se nós tivéssemos, por exemplo, uma fábrica de automóveis como têm os alemães, fazíamos um negócio com a China.” Mas isto da simpatia tem regras, adverte o presidente da Fundação Oriente. Nunca mostrarmos subserviência, pois assim não nos respeitam. “Com os chineses as relações têm de ser amigáveis mas firmes. Não se pode pôr de cócoras, até porque eles reconhecem isso negativamente.”

Mesmo ao lado da sede da fundação está o Museu do Oriente. “Temos lá um restaurante que vai andando e que tem um brunch que é agora conhecido como um dos melhores de Lisboa, eu acho graça, mas tem de se reservar com duas semanas de antecedência. Eu próprio quis reservar, não disse que era eu, telefonei a perguntar, “não, tem de reservar, nesta semana não dá, só para a outra semana, e mesmo assim está quase cheio” responderam”, conta Monjardino. Confesso-lhe que cheguei a pensar que o almoço seria lá, antes de saber desta surpresa da sala em memória do Aviz. Aproveita para notar que “o museu, além de exibir a excelente coleção de peças da Índia, da China, do Japão, tem características um bocadinho diferentes dos outros, porque isto não é só um museu, chamemos-lhe um centro cultural lato sensu. Temos cursos sobre tudo e mais alguma coisa, temos aulas de ioga, de tai chi, a lista nunca mais acaba. E também os concertos”.

Termina o almoço em que Monjardino também falou de um célebre jantar nos anos 1990 no Aviz (na versão do Chiado) em que ficou a fama de que Soares tinha reunido um grupo de fiéis para conspirar contra Cavaco Silva, então primeiro-ministro. O presidente da Fundação Oriente diz que não foi bem assim, que não se conspirou nada, mesmo que Cavaco até hoje acredite que sim.

Percebe-se que fala com carinho de Soares, que “se fartava de meter em Putsche falhados com o meu pai e com quem convivi depois em Paris”. Aproveito para perguntar o que pensa do atual governo este soarista que se nega a ser militante do PS e em tempos ponderou candidatar-se a Belém. “Está a correr bastante melhor do que esperava, embora eu quisesse ser otimista desde o início nunca pensei que funcionasse tão bem. Conheço o António Costa há uns anos. Demonstrou jeito para enfrentar as situações difíceis, não só externas como internas. Externas, como a posição que assumiu em relação à União Europeia, que ainda bem que a assumiu. E internas, neste acordo que fez com o Bloco e com o PC, que me pareceu à cabeça uma coisa difícil de fazer, mas que tem funcionado e que estou convencido de que enquanto lá estiver pelo menos o Costa vai correr bem. Ele tem jeito para ir equilibrando as coisas.”

Com o dia tão soalheiro, adivinha-se um passeio de barco e um gin tónico logo mais. Talvez. E despedimo-nos. 

Leonídio Paulo Ferreira 

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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