Sente-se na voz, no olhar, à mesa a degustar, no sorriso com que tudo observam: reencontram-se consigo mesmos; querem partilhar com quem está o que fazem lá fora. “Uma diversidade grande, da macro escala ao edifício. O que nos interessa é pensar como o edifício, ou aquela circunstância – pode ser o tecido urbano – ganha nova vida e continuas a ler coisas que lá existiam. Vamos mostrar muitas coisas em que o antigo se mescla com o novo; simbiose que cria uma nova entidade”, sintetiza Cristina Veríssimo. Trazem exemplos de obra feita em Portugal, Londres, Angola, Moçambique, Estados Unidos, Canadá… Explica Diogo Burnay que, “quando o património é mais consolidado, antigo, é óbvio que reconhecer a autenticidade do que lá estava é importante”. Mas noutras intervenções, em edifícios já adulterados ao longo do tempo, “queremos que a História seja contada, mas também enquadrar novos valores; procurar a alma do que lá está e entender as necessidades atuais do programa”.
A recuperação dos bairros antigos é hoje tema focal em Macau, assumido pelo futuro Chefe do Executivo, Sam Hou Fai. Diogo Burnay identifica espaços: “Península de Macau, Vila da Taipa, Vila de Coloane”. Foca-se na Península, “cidade na qual existem várias cidades”. Se entendemos que os bairros históricos “são exatamente bairros”, resilientes entre vários modelos de cidade, “há uma estrutura urbana de vizinhança; ruas estreitas, cheiros que se partilham entre vizinhos, que vale a pena manter. Não por sentido nostálgico, mas porque fazem parte da ambiência, densa e rica, dessa intensidade”. Vem-lhe à memória Wong Kar-wai, em cujos filmes “sentimos a humidade e o cheiro dos lugares retratados”. Ou seja, “há património não físico, ambiental; software que acho fundamental manter; memória viva e modo como as pessoas vivem neste espaço”.
O potencial das coisas é explorado quando é questionado, confrontado com suas diferenças, misturado com outras coisas e temas completamente diferentes
Diogo Burnay, arquiteto
Quando olha para o Cotai, Diogo Burnay vê como “celebra e acomoda novos modos de fazer cidade”. Esses projetos ligados ao turismo, à economia do jogo, “retiram pressão à velha cidade, que se pode reconstruir sem confronto direto, respeitando géneses e almas diferentes”. Cristina Veríssimo rende-se ao reencontro: “É o que sempre foi, a cidade maravilhosa que era; híbrida, metade europeia, metade chinesa; entendes ambas e vives esta dualidade”. Quando a reconstrução dos bairros antigos chegar “era muito interessante ver como um novo pulsar entende estas duas culturas e traz um novo género, ligando as duas. Muito mais interessante do que trazer modelos novos que impõem outra regra”. Sobretudo, frisa, “mantendo identidade suficiente para chegar aqui e dizer: Isto é Macau, cidade portuguesa na China. Os cidadãos daqui não podem perder essa memória que lhes permita dizer: esta é minha cidade. Estou encantada, porque esse pulsar está cá. É preciso é não deixar a morrer”. Diogo Burnay reforça esse mesmo sentir: “Está cá, de uma forma incrível. Passeamos no Leal Senado, Porto Interior, Rua da Felicidade… a recuperação é muito mais possível agora, porque há outras alternativas que contribuem para que estes tecidos sejam menos pressionados”.
Híbrido na alma e no estirador
“Sentimos parte de Macau em nós todos os dias”. Diogo Burnay, que escreveu sobre arquitetura e colonialismo, confessa-se formatado pelo “confronto de valores, coisas que se misturam. Tivemos aqui esta exposição a mundos que se entrecruzam”. Cristina Veríssimo olha para a memória, para uma vida que “tem sido ser híbrida”. Cresceu; “se calhar renasci”, em vários sítios. Mas Macau é irrepetível: “Adorei essa experiência que, em outro sítio, levaria o dobro do tempo”. O tema do híbrido apaixona. Diogo Burnay descreve essa centralidade no percurso profissional: “Percebe-se sempre uma confluência de coisas que, não sendo necessariamente antagónicas, convivem bem, sendo diferentes entre si. Todas as nossas obras têm momentos em que não procura a pureza, no sentido da presença ou modos de estar. O potencial das coisas é explorado quando é questionado, confrontado com suas diferenças, misturado com outras coisas e temas completamente diferentes”.
Olhamos sempre para os dois lados, ambientamo-nos, questionamos as pessoas. O híbrido acontece
Cristina Veríssimo, arquiteta
Confrontados com a ideia de serem herdeiros de uma escola de Macau, Cristina Veríssimo contrapõe outras experiências “muito fortes”, como a de Londres, com Zaha Hadid: “Somos contaminados pelas experiências que vamos tendo. Não sei tinha a consciência de que estaria aqui a ser influenciada; ou se estava sequer a par da escola que cá estava. Mas havia uma certa liberdade; afastados dos centros, tínhamos a possibilidade de fazer coisas que não nos amarravam a grandes imagens ou linguagens”. Estudou no Porto, e em Lisboa; cresceu em vários sítios… “Já por si sou híbrido e aqui consegui entendê-lo. Com a Hadid mais híbrido me tornei”.
Diogo Burnay trabalhou com Manuel Vicente, personagem “único” que “marcou várias gerações de arquitetos em Macau”. Mas depois juntou-se a Bruno Soares e Irene Ó; “geração mais nova e uma forma de estar e muito diferente. O Manuel tem uma escola muito marcante, mas não acho que seja a única de Macau. Aquilo que eu acho que é forte, digamos na escola do Manuel, é que muitas outras surgiram desse embrião. Ele tinha essa generosidade de nos deixar pensar que tínhamos espaço para construir os nossos percursos. Já a experiência com a Irene e o Bruno Soares foi “muito dedicada à arquitetura, à disciplina, com entendimento do meio muito particular. A Irene dominava a língua chinesa; com isso conseguíamos uma qualidade de projeto e de arquitetura ímpar”.
Aquilo que é forte, digamos na escola do Manuel, é que muitas outras surgiram desse embrião. Ele tinha esta essa generosidade de nos deixar pensar que tínhamos espaço para construir os nossos percursos
Diogo Burnay, arquiteto
A linguagem na arquitetura altera-se, adapta-se. “O que fazíamos, há 20 anos, não é a mesma coisa”, reconhece Cristina Veríssimo. “E a cultura local é fundamental. Olhamos sempre para os dois lados, ambientamo-nos, questionamos as pessoas. O híbrido acontece”. Não é tanto uma linguagem, mas “os temas, os valores”, detalha Diogo Burnay: “Fazemos sobretudo obra pública; e temos sempre atenção ao modo como o projeto, a obra, pode juntar as pessoas, congregar uma comunidade”. Em relação à arquitetura em geral, “o que se observa é que escritórios que operam à escala planetária têm fórmulas universais, aplicáveis a múltiplos sítios; mas também necessidade de adaptação a meios, economias, tecnologias locais”. Por outro lado, “as pessoas estão cada vez mais atentas ao planeta, à sustentabilidade; cada vez há menos predisposição para construir na Malásia e os materiais virem da Suíça. Construindo na Ásia, mesmo que o gabinete esteja em Nova Iorque, se houver benefício económico-social local a obra cumpre-se melhor”, conclui Diogo Burnay. Na mais recente experiência em Moçambique, fizeram “investigação alargada sobre fornecedores, ligados mais ao sul que ao norte; a olhar para transversalidades da zona e não para recursos ou materiais que viessem, por exemplo, de Portugal. Todos ganhamos quando a economia local ganha”.
Havia uma certa liberdade; afastados dos centros, tínhamos a possibilidade de fazer coisas que não nos amarravam a grandes imagens ou linguagens
Cristina Veríssimo, arquiteta
Canadá sabe tolerar
Pensando na maior lição que trazem do Canadá, onde vivem há mais de uma década, Cristina Veríssimo elege “o complemento entre a construção e a natureza, dois mundos que se interligam. Singapura é o exemplo extremo; de repente vemos um jardim no quinto andar. O Canadá não tem a densidade que isto tem; e transpor essa ideia para aqui é difícil, mas sentir que o natural tem que ser mantido, acho que é uma lição”. Diogo Burnay prefere outra simbiose: “Há uma confluência de culturas brutal; atenção à História, ao outro; enorme tolerância com o que aparentemente é diferente; espaço para que se encontrem pontos comuns”. Transpondo o raciocínio para Macau, “continuamente colonizado por portugueses, chineses, agora pela comunidade internacional – digamos americanos – importa perceber como é que na confluência destes valores existe a construção de um lugar onde as pessoas com estas diferenças podem conviver; e todos sintam que é deles”.