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“Globalização parece não estar a homogeneizar a cultura macaense”

“Graças às novas tecnologias de comunicação, as comunidades luso-asiáticas e macaenses, em vários países, não só têm sobrevivido, mas até crescido”. Em entrevista ao PLATAFORMA, o sociólogo Roy Eric Xavier, diretor do Projeto de Estudos Portugueses e Macaenses, e investigador na Universidade de Berkeley - Califórnia - diz que “o futuro dependerá, em última análise, do papel que [estas comunidades] terão no desenvolvimento de Macau, Hong Kong, e Grande Baía”

Nelson Moura

– Quais são os principais objetivos deste Inquérito Luso-Asiático/Macaense 2024, comparando-os com os anteriores, realizados desde 2012? O foco e o âmbito evoluíram?

Roy Xavier – O propósito do inquérito é determinar como os inquiridos mantêm conexões familiares e identidades culturais. Nos inquéritos anteriores, o destaque foi dado ao tamanho e localização das famílias. Embora perguntas sobre conexão e identidade já tenham sido feitas antes, achámos que seria útil aprofundar a forma como os luso-asiáticos/macaenses tentam manter vivas essas conexões e identidades à medida que a comunidade evolui, ao longo do tempo e em diferentes locais.

– O inquérito abordou inquiridos em dez países e 200 cidades. Pode detalhar a distribuição geográfica da diáspora? Existem mudanças assinaláveis nos padrões de migração?

R.X. – A distribuição das localizações atuais, em geral, segue a das migrações pós-Segunda Guerra Mundial, quer de Macau quer de Hong Kong. O maior grupo de falantes de inglês de Hong Kong estabeleceu-se nos EUA, Austrália e Canadá. Um grupo menor de falantes de português migrou para Portugal, Europa e Brasil. No entanto, no inquérito atual, aprendemos que um número significativo (8,79 por cento) permaneceu ou voltou para Hong Kong, Macau e outras partes do Sudeste Asiático. Isso pode sugerir que as comunidades originais, criadas há vários séculos, continuam a ser relevantes como âncoras culturais para o resto da diáspora macaense; e isso tem implicações para as gerações passadas e futuras. Uma maneira de desenvolver isso é o reconhecimento das origens ancestrais e da identidade cultural, em respostas posteriores, no mesmo inquérito.

Famílias luso-asiáticas/macaenses, desde o século XVI: grandes, multigeracionais e racialmente diversas. Essas características continuam a prevalecer no século XXI.

– Mais de 50 por cento dos inquiridos vem de famílias grandes, entre 31 e mais de 150 membros vivos. Quais são as implicações dessas estruturas familiares na manutenção das identidades culturais e conexões?

R.X. – O simples facto de mais de metade dos inquiridos estar ciente das suas famílias numerosas sugere que têm mantido contacto. Isso segue as características tradicionais das famílias luso-asiáticas/macaenses, desde o século XVI: grandes, multigeracionais e racialmente diversas. Essas características continuam a prevalecer no século XXI.

– A grande maioria dos inquiridos – mais de 80 por cento – identifica-se como macaense, português ou luso-asiático. Qual é a importância dessa autoidentificação, comparada com anos anteriores? Que fatores contribuem para a persistência da identidade cultural ao longo das gerações?

R.X. – A autoidentificação cultural parece ter-se fortalecido nos últimos quatro anos, desde o último inquérito. Em 2020, agrupámos “luso-asiático” sob “eurasiático”. Este ano, separámos os dois grupos, percebendo que eurasiáticos poderiam incluir não-portugueses (como famílias originárias de Goa, Países Baixos ou Reino Unido), que se misturaram com macaenses. Mas o termo “luso-asiático” tem sido usado apenas há cerca de dez anos. Como resultado, mais inquiridos identificaram-se como “eurasiáticos” (14,86 por cento) do que “luso-asiáticos” (5,04 por cento). Se considerarmos “eurasiáticos” os descendentes desta diáspora, a quem pedimos para responder, mais de 90 por cento identificam-se com a cultura macaense.

A manutenção dessas conexões e identidades pode ser uma oportunidade para as comunidades da diáspora, governos e instituições, criarem benefícios tangíveis para todas as partes envolvidas

Os inquiridos parecem também estar muito cientes de onde vieram os seus antepassados, como se vê pela lista de locais que seguiram as migrações originais de Portugal, Goa, Macau, Hong Kong, Xangai, Cantão, Malásia, Japão e Timor. A persistência dessa identidade cultural – através dessa consciência e autoidentificação – ao longo de muitas gerações, especialmente no século XXI, pode ser atribuída ao uso da internet, redes sociais e tecnologias digitais para comunicar e adquirir conhecimento histórico. Isso não tem sido limitado por fronteiras nacionais; os nossos dados sobre o uso de várias plataformas parecem confirmar essas conclusões.

– Os relatos mostram taxas mais baixas de problemas de saúde, em comparação com as médias nacionais, o que é atribuído a laços familiares mais fortes. Quais são os benefícios sociais e psicológicos dessas estruturas familiares coesas?

R.X. – Posso apenas especular sobre isso, mas suspeito que famílias coesas, mesmo em sociedades globalizadas, permanecem mais saudáveis, por mais tempo. Novamente, a comunicação regular e uma identidade pessoal forte, provavelmente, são fatores que contribuem para isso.

– Quais são os principais desafios e tendências da diáspora? A utilização das tecnologias de comunicação modernas – como as redes sociais – para manter conexões culturais e identitárias?

R.X. – Os principais desafios são a capacidade e a disposição de manter vivas as conexões familiares e culturais entre as gerações seguintes. “Encontrar as nossas raízes” é ótimo para muitas pessoas; mas, eventualmente, essas conexões devem ter relevância para a vida quotidiana em todas as redes de comunicação. Em outras palavras: a manutenção dessas conexões e identidades pode ser uma oportunidade para as comunidades da diáspora, governos e instituições, criarem benefícios tangíveis para todas as partes envolvidas. Algumas das iniciativas poderiam ser no turismo cultural, colaboração educacional, parcerias comerciais… ou simplesmente, partilhar informações sobre diferentes culturas. Isso seria especialmente relevante para os jovens cujas vidas incorporam tecnologias visuais e aplicações digitais. Por exemplo na China e nos Estados Unidos, com base nas nossas observações muitos jovens na faixa dos 20 e 30 anos de idade, tornaram-se mais empreendedores, devido ao impacto da pandemia e da recessão global. Alguns jovens trabalhadores estão até a usar edifícios abandonados, em pequenas cidades e aldeias esquecidas, para criar novos negócios, procurando as mesmas conexões culturais que os seus pais e avós desfrutaram.

De facto, a Grande Baía é atualmente o foco de colaboração entre a RPC, instituições americanas e parceiros europeus

– Quais são as iniciativas em que o Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) – e outras associações – se podem focar para fortalecer as suas comunidades globais?

R.X. – Desde a transferência de soberania, o CCM e as associações luso-asiáticas/macaenses têm feito um bom trabalho em encorajar e fortalecer as suas comunidades. Devem ser felicitados pelas suas realizações nos últimos 25 anos; mas não se pode esperar que carreguem todo o fardo, especialmente se o turismo cultural, colaboração educacional, parcerias comerciais ou partilha de informação cultural forem adicionados à agenda. É preciso mais apoio governamental e institucional para formar novas parcerias e alcançarem esses objetivos.

– Como vê a identidade dessas comunidades nas próximas décadas, face ao incremento da globalização e mudanças demográficas? Quais são as melhores estratégias para preservar o seu património cultural único?

R.X. – Na verdade, vejo o tema da identidade e as comunidades luso-asiáticas/macaenses a beneficiarem de algumas formas da globalização, bem como das mudanças demográficas. A globalização não parece estar a “homogeneizar” a cultura macaense, como inicialmente se temia. Apesar do tempo, da distância e da dispersão, ao longo de 500 anos, em vários países não só sobrevivem, como na verdade florescem – por causa da globalização. Isto é, a tecnologia e a inovação digital não permitem que as fronteiras nacionais se tornem obstáculos. O apoio institucional do CCM e do Instituto Cultural de Macau, bem como o reconhecimento da cultura macaense, por parte da China, também foram fundamentais para manter a cultura desde 1999.

O futuro dependerá, em última análise, do papel que as comunidades luso-asiáticas/macaenses terão no desenvolvimento de Macau, Hong Kong, e da Grande Baía em geral. Hengqin, em particular, poderia ser o foco de projetos futuros. De facto, a Grande Baía é atualmente o foco de colaboração entre a RPC, instituições americanas e parceiros europeus. As minhas relações estreitas com o grupo de trabalho americano, e com a Universidade de Macau, ao longo dos últimos anos, sugerem que comunidades étnicas como a dos macaenses proporcionam um canal conveniente para manter relações construtivas, que podem beneficiar todos os parceiros.

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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