Os delegados lusófonos ao Fórum Macau perderam direito ao Bilhete de Identidade de Residente (BIR), por força da Lei n.º 16/2021, que regula as autorizações de permanência e residência. Mais que um documento, perdem direitos e nível de vida; ficam sem subsídios, sem descontos para a escola dos filhos, sem acesso gratuito aos serviços de saúde… alteram o perfil da conta bancária, passam horas na fronteira a explicar quem são e o que fazem… circulam na rua com um papel agrafado ao passaporte que os autoriza a cá viver

Não houve comunicação diplomática, negociação prévia, nem qualquer arranjo compensatório. E ninguém fala; o assunto está “trancado a sete chaves”, mas “o incómodo é enorme e a tensão generalizada entre todos”, explica fonte sob anonimato. Embora a lei seja do ano passado, os delegados só se aperceberam das suas consequências quando chegaram dois colegas novos. Pois como tinham os seus documentos válidos, nunca foram confrontados com o bloqueio que surgiria mais tarde à sua renovação.
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O PLATAFORMA apurou que a reação dos delegados foi organizada de forma coletiva, tendo primeiro pedido a intervenção do Secretariado Permanente do Fórum, no sentido de que a parte chinesa, que lidera o organismo, mediasse o caso junto das autoridades locais. Contudo, as chefias nomeadas pelo Ministério do Comércio entenderam não ter legitimidade formal para intervir, por se tratar de “decisão da exclusiva competência das autoridades de Macau”. Já os quadros nomeados por Macau alegaram “nada saber” e “nada poder fazer”.
PEDIDOS DE AJUDA
O Gabinete de Apoio pediu então formalmente reunião com os serviços de imigração da Polícia, bem como a intervenção do Secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong. Esta ronda – e a esperança – acaba formalmente encerrada por carta do chefe de gabinete do Secretário para a Segurança…
A 21 de julho, Cheong Ioc Ieng explica em resposta ao pedido de esclarecimentos do Gabinete de Apoio do Fórum Macau, dirigida à chefe de gabinete do Secretário para a Economia e Finanças:
“Em relação à proposta colocada pelo Gabinete de Apoio na reunião de que o tratamento em epígrafe seja aplicável apenas aos delegados recém-chegados, nos termos da Lei n.º 16/2021, particularmente as disposições especiais acima referidas, até ao presente momento, não existe qualquer fundamento de direito para continuar a aprovar a autorização de residência aos delegados dos Países de Língua Portuguesa”.
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Ou seja, tendo direitos que consideravam adquiridos – com o músculo político da Conferência Ministerial e dos plano de ação – desde de 2003 – que lhes atribuíam três anos de BIR, renováveis por mais três, os delegados ainda tentaram que a nova disposição fosse aplicada apenas aos que foram recentemente nomeados, já depois da entrada em vigor da nova lei. Pretensão liminarmente negada.

Na carta do chefe de gabinete de Wong Sio Chak, à qual o PLATAFORMA teve acesso, são esclarecidas todas as consequências:
“Além disso, gostaria de informar o Gabinete de Apoio de que com a entrada em vigor da referida lei, os conteúdos previstos no nº.2, artigo 6º. do regulamento interno do Secretariado Permanente do Fórum, bem como no ponto IV, nas condições de vida, indicado na alínea b, do nº. 1 do mesmo regulamento, são incompatíveis com as disposições previstas na lei”.
Na prática, o que aconteceu aos dois novos delegados, nomeados por Angola e pela Guiné-Bissau, foi que aceitaram os cargos com base no pressuposto de que as condições seriam iguais àquelas que tinham os seus antecessores, tendo só aqui sido confrontados com a nova realidade. Ficou então claro a todos quantos cá estavam que teriam também de entregar o BIR, assim que expirasse a sua data de validade – sem direito à renovação com a qual contavam.
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E estão todos a fazê-lo, à exceção de um único caso, por ter BIR permanente, uma vez que já residia em Macau muito antes da nomeação para o Fórum.
ÉTICA DIPLOMÁTICA
As consequências pessoais são óbvias: o portador de BIR tem direito a subsídios ao nível de vida, cartões de consumo, descontos na escola dos filhos, acesso a saúde, burocracia facilitada nas fronteiras, etc…

Numa família numerosa, uma vez que o BIR era atribuído a todo o agregado, as consequências ao nível do rendimento são significativas. Só para dar o exemplo da Escola Portuguesa de Macau, cada filho terá um custo geralmente três vezes superior ao que tinha.
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Para além disso, realça fonte diplomática ao PLATAFORMA, há a questão política: “Nenhum representante de um país lusófono estará certamente contra o cumprimento da lei. Mas há formas de fazer estas coisas e uma ética diplomática; recorrendo a canais diplomáticos que devem ser avisados de forma institucional; já para não falar de medidas compensatórias que podem ser negociadas”.
Outra questão “sensível”, esclarece a mesma fonte, sempre sob anonimato, é “o respeito devido a altos quadros, com passaporte diplomático, convidados pela China para residirem em Macau, cumprindo um desígnio estratégico que supostamente interessa a todos… Se isto não merece um tratamento, senão excecional, pelo menos cuidado; não sei o que possa merecer”.
EXCEÇÃO… E CONSEQUÊNCIAS
Wong Sio Chak aplica a lei. E a reflexão jurídica surge de forma assumida e fundamentada na carta assinada pelo seu chefe de gabinete. Curiosamente, essa mesma lei permite ao Chefe do Executivo atribuir o BIR, de forma excecional, a altos quadros especialmente relevantes para Macau, como acontece noutros casos.

Contudo, neste momento particular da vida da Região, Ho Iat Seng não terá ponderado essa hipótese – se é que foi confrontado com ela – hipótese que não foi possível apurar até ao fecho desta edição.
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Em circuitos diplomáticos contactados pelo PLATAFORMA, a questão está a ter impacto político, embora não haja reações públicas.
Por um lado, dada a tradicional discrição com que os assuntos mais sensíveis são tratados; por outro, por haver interesses de Estado que não querem prejudicar com posições públicas.

O PLATAFORMA pode contudo confirmar que os embaixadores lusófonos em Pequim estão já a par da tensão que hoje se vive no Fórum Macau.
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Aliás, num contexto em que a retirada dos BIRs “é apenas mais um caso”, havendo questões “mais graves que devem ser revistas”, alerta fonte conhecedora de “uma série de constrangimentos que não se devem apenas às circunstâncias difíceis da crise económica e pandémica”. Seja como for, “há mínimos”, remata:
“Os delegados representam os seus países, têm passaporte diplomático, e são convidados pela China. Não podem andar na rua com um papelinho no passaporte. Nem um Blue Card lhes deram!”.