O desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira no Vale do Javari pôs em destaque esta remota região amazônica na fronteira com o Peru e a Colômbia, com forte presença do narcotráfico.
O local onde os dois homens foram vistos pela última quando navegavam o rio Itaquaí, na manhã de domingo, 5 de junho, é próximo à segunda maior terra indígena do Brasil, com uma população de 6.300 pessoas de 26 etnias, 19 das quais vivem completamente isoladas.
Nos últimos anos, a região tem sofrido um aumento da criminalidade que, segundo fontes consultadas pela AFP que trabalharam na região e continuaram visitando-a, se deve a uma fiscalização mais frouxa do Estado brasileiro, aproveitada pelo narcotráfico e por outras organizações ilegais de garimpo, caça, pesca e extração de madeira.
Isso levou o superintendente regional da Polícia Federal do Amazonas, Eduardo Alexandre Fontes, a qualificá-la de uma região “bastante perigosa”, ao iniciar as buscas dos desaparecidos.
Região “privilegiada”
“A região amazônica sempre se apresentou como um espaço privilegiado para as ações do tráfico (…) porque a dinâmica da natureza, da floresta, contribui para a própria camuflagem da droga”, explicou Aiala Colares, geógrafo da Universidade Federal do Pará (norte) e pesquisador especializado na Amazônia na ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Na imensidão da densa floresta amazônica, cortada por rios que durante alguns meses ao ano inundam parte da vegetação, os povos indígenas têm enfrentando ameaças crescentes e invasões de grupos criminosos.
Narcotraficantes têm apostado desde a década de 1990 nas vias fluviais da região para transportar drogas, principalmente cocaína do Peru e cannabis do tipo skunk e maconha da Colômbia, enumerou Colares.
O tráfico cresceu substancialmente na última década, disse o especialista, explicando que esta rota acaba abastecendo o mercado brasileiro ou continua para o exterior.
Colares definiu como “multidimensional” a ação das quadrilhas que operam ali, pois combinam tanto o narcotráfico quanto crimes ambientais, como o contrabando de madeira.
A principal delas, “Os Crias”, surgiu em 2021 como dissidência da Família do Norte, uma das maiores organizações da Amazônia. A facção domina a tríplice fronteira do lado brasileiro e as rotas do Javari, acrescentou.
Problema de desigualdade
Bárbara Arisi, antropóloga e professora da Vrije Universiteit de Amsterdã, trabalha com povos do Javari desde 2003 e afirma ter constatado uma deterioração na última década.
“Cada vez mais criminosos, mais organizados e armados, tiraram proveito da falta de estrutura do Estado” nesta região, disse Arisi, destacando a penetração do narcotráfico em alguns povos indígenas, como os Tikuna.
A antropóloga comparou a inserção do narcotráfico em comunidades indígenas à penetração em comunidades de cidades como o Rio de Janeiro.
“O narcotráfico oferece trabalho para jovens e uma vida que não têm opção de atingir. Oferece-lhes dinheiro e muitos acabam virando mulas ou olheiros”, explicou a antropóloga.
Por exemplo, Atalaia do Norte, cidade onde Phillips e Pereira estavam baseados durante sua expedição, tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano de todo o Brasil entre mais de 5.000 municípios, segundo o último censo.
História de impunidade
O presidente Jair Bolsonaro chegou ao poder em janeiro de 2019 com a promessa de desenvolver a Amazônia, um território, segundo suas palavras, ocupado por “índios pobres” em “terras ricas”.
O presidente mudou a direção da Fundação Nacional do Índio (Funai) e pôs um pastor evangélico a cargo do departamento de tribos isoladas da entidade, acusado por ativistas de ignorar os interesses destes povos.
A base da Funai situada às margens do rio Itaquaí foi atacada a tiros em várias ocasiões nos últimos anos.
O próprio Pereira, que como licenciado da Funai ajudava indígenas a se organizarem para defender seu território, havia sido ameaçado por madeireiros e garimpeiros que tentavam invadir terras protegidas.
“O que aconteceu com Bruno e Dom é resultado de toda essa máfia que existe na região e do crime organizado que só é possível se constituir pela ausência do Estado”, disse Antenor Vaz, presidente da Funai no Javari entre 2006 e 2009.
Vaz se mostrou pessimista sobre a possibilidade de que, após mais de uma semana de seu desaparecimento, as autoridades encontrem os responsáveis materiais e intelectuais do caso.
Ele lembrou o assassinato de Maxiel Pereira dos Santos, responsável de operações contra madeireiros e pescadores ilegais na Funai, morto a tiros em 2019. Três anos depois, nenhum suspeito foi denunciado ou preso.
“Qualquer cidadão que levantar a voz contra a ilegalidade está exposto”, acrescentou.