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Olhando os jardins, empurrados pelo vento do progresso

Debby Sou Vai Keng e Martin Zeller mostram no Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa “Novos Jardins Macau”. Uma exposição de costas voltadas para o futuro, onde grandes impressões fotográficas de espaços urbanos remetem para a natureza e para a pintura tradicional chinesa.

O que é um jardim? Num falante de cantonês, inglês ou português de Macau um jardim pode ser, por exemplo, um prédio de habitação. A polissemia da palavra permite-lhe transpor espaço urbano e natural, o velho e o novo, o que é construído pelo homem com premeditação ou acidente.  

Em “Novos Jardins Macau”, expostos desde ontem e até junho em Lisboa, no Centro Científico e Cultural de Macau, são velhas paredes onde a ação do tempo e das pessoas evoca a tradição pictórica chinesa – água, montanhas, poesia, caligrafia – e os seus genuínos processos e materiais – papel de arroz, seda, tinta, goma de amido de milho, a cera trabalhada com uma pedra lisa e redonda a fixar as imagens. Mas, suportando a fotografia e, algures, as ideias  de um filósofo da Escola de Frankfurt da primeira metade do século XX, Walter Benjamin. 

As obras da pintora e escritora de Macau Debby Sou Vai Keng e do fotógrafo alemão Martin Zeller são parte de um projeto ainda em curso e iniciado há vários anos, havendo nelas hoje, provavelmente tantas camadas quantos os anos de trabalho, as paredes retratadas, ou os rolos tradicionais chineses em que são apresentadas: seis folhas de papel de arroz sobrepostas, às quais se junta ainda uma camada de seda como entretela. Sobre estas, a impressão a grandes dimensões em escala quase real das faces da cidade de Macau, fotografadas por Zeller, e a poesia de Sou, convocando imagens sobre a passagem do tempo. 

Como método, Sou e Zeller colaboram a partir do estudo comum de obras da filosofia ou da história da arte. O projeto “Novos Jardins” nasceu das teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história – em particular, uma tese onde o filósofo disserta sobre o historicismo apoiado numa obra de Paul Klee, “Angelus Novus”, onde os anjos têm costas: há um novo ser celeste dramática e irresistivelmente empurrado pelos ventos do progresso em direção ao paraíso, mas encarando o passado e de costas viradas ao futuro. 

“Seguimos em direção ao futuro, mas não conseguimos ver o que nos espera. Estamos cegos para o futuro e focamo-nos apenas nas relíquias que deixamos para trás”, interpreta Martin Zeller. “Quando pensamos no futuro, esta ideia de progresso, de algo que melhora ou aumenta, é frequentemente a nossa motivação. Mas há muito espaço para pensar se não é um mito pensar que há progresso. Em Walter Benjamin sentimos também que ele terá esta nostalgia do passado”, junta Sou.

É talvez apenas uma coincidência que também a língua chinesa, como o anjo de Klee, veja à frente de si o passado e atrás de si o seu futuro neste trabalho em que, assumidamente, ideias do Ocidente e do Oriente se encontram. E à frente dos dois artistas ergue-se, de alguma maneira, o passado de Macau, e talvez a nostalgia. 

As paredes marcadas pelo verde água, pelo bolor, pela oxidação, pelos vestígios de uma atividade, de uma mensagem afixada e arrancada transfiguram-se: são a natureza das grandes montanhas, numa primeira hora, e, aos poucos, os detalhes concretos do espaço urbano – um arame, uma racha, um resto de papel – que despertam para o facto de se estar a ver uma fotografia e não uma pintura clássica chinesa.

“Se nos detivermos, começamos a aperceber-nos de imensos ‘happenings’. O que é que se passou aqui? De repente, há um ponto vermelho na parede, e pensamos em quem terá posto aquilo ali, no que estaria lá antes. Talvez lá estivesse antes um cartaz ou não. Há imenso espaço para a imaginação”, diz Debbie Sou.

“O projeto é certamente muito sobre pátina. Aquilo a que comummente chamamos pátina está a desaparecer progressivamente em Macau e em toda a região do Delta do Rio das Pérolas: este tipo de fachadas e materiais que exibem a história de um edifício e de um material. Esta é também uma forma de preservar estas qualidades junto de nós”, reflete Zeller. “Na verdade, algumas destas paredes já desapareceram. Muitas delas, aliás”, nota Sou. 

Por trás deste projeto está também um delicado e moroso trabalho de montagem tradicional dos rolos de papel de arroz, cada um deles implicando um mês de trabalho, mais de três dezenas de processos diferentes e um rigoroso controlo da humidade e da temperatura até à secagem e fixação das imagens finais. Um trabalho de paciência, admite Debby Sou, que também constituiu uma aprendizagem do tempo para os autores.

As obras agora expostas em Lisboa foram já exibidas em Hong Kong, Berlim e Munique, tendo parte delas, entretanto, sido adquirida por colecionadores e museus alemães. O tempo, mais uma vez, impediu até aqui que fossem apresentadas em Macau, mas Debby Sou e Martin Zeller esperam que em breve tal possa vir a acontecer. “Seria bom, nalgum ponto, levar estas imagens a casa. Sinto até que pertencem a Macau”, afirma o fotógrafo.

Parte do projeto “Novos Jardins”, agora não exibida, é também uma série intitulada “Diana”, já exposta na Alemanha. Com técnica semelhante, trata-se de um conjunto de fotografias sobre papel de arroz que capta as paredes do antigo Hotel Estoril de Macau e da discoteca “Diana”, onde a princesa do povo dos anos 1980 e 1990 reinava como imagem tutelar. “San Fai Yun”, os “novos jardins” de Sou e Zeller, são também nome pelo qual é conhecida a zona da piscina do Hotel Estoril, e o passado, permanentemente obliterado que é o único tempo que é possível olhar. 

Maria Caetano  15.02.2018

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