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“Este não é um surto de empreendedorismo de ocasião”

Lisboa quer afirmar-se como capital de inovação. Miguel Fontes, diretor da Startup Lisboa, fala do projeto Hub Criativo do Beato e do programa de cooperação com Macau anunciado este ano.

Miguel Fontes é desde o ano passado diretor da Startup Lisboa. No próximo ano a incubadora da capital portuguesa abre um novo pólo para empresas na área da inovação, multinacionais consolidadas e pequenos projetos em arranque, em antigas instalações militares na zona do Beato. São 35 mil metros quadrados onde estarão, de início, instaladas empresas como a Mercedes e a UNICER, e onde a incubadora alemã Factory também já garantiu um lugar. A Startup Lisboa vai também mudar-se para lá. Miguel Fontes diz que o “ecossistema” de novos modelos de negócios está a diversificar-se, ao mesmo tempo que se multiplicam as incubadoras nacionais e estrangeiras. Só na marginal lisboeta vão estar, no próximo ano, as britânicas Second Home e Impact Hub, a alemã Factory, e a ainda a Startup Lisboa. O sucesso das empresas que acolhem, esse, continua a ser difícil de aferir. Mas o diretor da Startup Lisboa fala de uma mudança irreversível de paradigma na economia portuguesa.

– O projeto do Hub Criativo do Beato foi apresentado com a estimativa de que possam ser criados três mil postos de trabalho a médio prazo, e já com duas empresas que se prevê que se fiquem ali instaladas: o departamento digital da Mercedes e a UNICER. Para as outras empresas que queiram atrair, já há um quadro de condições programado?

Miguel Fontes – O Hub Criativo do Beato tem como objetivo ajudar a consolidar o posicionamento de Lisboa como uma cidade aberta à inovação, à tecnologia, às indústrias criativas e ao empreendedorismo. Para isso, queremos atrair para Lisboa projetos e promotores que ainda não estejam na cidade. Nesse sentido, o modelo que foi definido em termos de condições é que o município de Lisboa vai suportar o custo associado ao investimento nos espaços comuns – nas redes de águas e esgotos, na eletrificação, no wifi, nos arranjos exteriores – e vai permitir que cada promotor suporte integralmente o custo da reabilitação e adaptação dos edifícios às suas necessidades e às suas funções, sendo que o município criou um quadro financeiro muito atrativo. Permitirá que as entidades que se venham a instalar no Beato neste modelo só tenham de começar a pagar pela cedência da utilização do espaço quando já tiverem recuperado integralmente o investimento realizado. O preço em concreto da cedência vai depender da natureza do projeto que se vai instalar e da tipologia do edifício em causa. Não há uma tabela com a qual se possa dizer que é ‘x’ euros o metro quadrado.

– Há a necessidade de um investimento inicial na reabilitação. Portanto, estão a procurar atrair empresas de inovação mas não necessariamente pequenas startups?

M.F. – Sim e não. Há quatro grandes eixos estratégicos: empreendedorismo, indústrias criativas, inovação e conhecimento, e eixo das empresas que, de um modo geral, estão muito associadas à tecnologia e inovação. No eixo do empreendedorismo, obviamente queremos ter startups em diferentes fases de desenvolvimento. Como vamos consegui-lo? Através de entidades como por exemplo a Factory Berlim, uma das âncoras já anunciadas para o espaço, que é um player muito relevante no ecossistema internacional de startups e que vai suportar o investimento na reabilitação e arrendar espaço a clientes finais como startups. O mesmo vai fazer a Startup Lisboa. Vamos ter uma área considerável dentro do Beato de modo a que possamos continuar a cumprir a nossa missão de apoio ao desenvolvimento dos negócios das startups. Nomeadamente, aquelas que estão a crescer e a que, por limitações óbvias da tipologia do edifício onde nos encontramos [baixa lisboeta], já não conseguimos responder. Queremos superar essa limitação criando no Beato as condições para podermos receber mais startups, tanto nacionais como internacionais. 

– Os serviços que a Startup Lisboa vai garantir na altura em que o hub estiver concluído são os que já está a garantir agora?

M.F. – Vamos ter um duplo papel no Hub Criativo do Beato. Vamos ser, por um lado, a entidade gestora daquele espaço, tal como já somos hoje a entidade promotora. Ao mesmo tempo, vamos continuar a ser a Startup Lisboa que sempre fomos. Ou seja, uma incubadora de empresas que atua em cinco grandes áreas: no acesso a uma boa rede de mentores, no acesso a uma boa rede de parceiros, na criação de uma verdadeira comunidade de empreendedores, no trabalho da comunicação interna e externa, e em permitir o contacto das startups com o mundo dos investidores. É esta a nossa proposta de valor, muito resumida. Vamos continuar a fazê-lo no Beato. Hoje estamos com projetos na área do turismo, na área do comércio e em tudo o que tinha que ver com tecnologia, independentemente de onde venha, da Internet das Coisas à fintech. Queremos criar no Beato condições para o fazermos ainda melhor, eventualmente com novas áreas que ainda não temos. A par do Beato, temos uma parceria com a Central de Cervejas que nos vai permitir abrir no Chiado um espaço novo de incubação durante o ano de 2018, também dedicado integralmente a ‘food & beverage’. 

– Em Portugal, tem havido uma pequena explosão de incubadoras e aceleradoras de crescimento para empresas em arranque. Por exemplo, com espaços como o Second Home, em Lisboa, com valências na área do ‘coworking’. Há incubadoras no Porto e em Coimbra. Como é que todas estas entidades trabalham? Em cooperação ou competição?

M.F. – Há uma expressão feliz que é “coopetição”, uma mistura de cooperação com alguma competição saudável. Todos temos a noção, felizmente, de que somos poucos para fazer crescer o ecossistema. Todos somos necessários e o importante, ao final do dia, é criar um ecossistema robusto em Portugal – e, nomeadamente, em Lisboa, o local a partir do qual falo. Temos essa cultura de olharmos uns para os outros mais como cooperantes do que como competidores. Mas, obviamente, a competição acaba por ser inevitável porque ocupamos espaços que às vezes se sobrepõem. Tentamos todos atrair os melhores projetos, os melhores empreendedores, e isso é normal. Mas, felizmente, na Startup Lisboa nunca tivemos necessidade de encarar o que está a acontecer dessa forma. Temos um carácter institucional, somos uma associação sem fins lucrativos, com três fundadores institucionais: a Câmara de Lisboa, o Montepio Geral e o IAPMEI, que é um instituto de apoio às pequenas e médias empresas. A nossa missão principal é, por um lado, ajudar a desenvolver e fazer crescer as startups, mas é também, a montante e jusante disso, ajudar a desenvolver o ecossistema de Lisboa. É por isso que somos tão amigáveis com quem chega. Ajudámos a Second Home a instalar-se em Lisboa, o Rohan Silva [fco-undador] teve as melhores relações connosco. Ajudámos a Impact Hub a vir para Lisboa. Há todo um conjunto de entidades que estão a querer instalar-se em Lisboa e nós vemos isso com muitos bons olhos. 

– Este movimento é de certa forma indissociável também das tendências que se estão a verificar quer no turismo quer na reabilitação urbana. Vai continuar a depender do imobiliário e do turismo para crescer?

M.F. – Lisboa está a viver um momento absolutamente fascinante e muito vibrante. Há um mundo que literalmente neste momento está a descobrir Lisboa, e Portugal de modo geral, a partir de diferentes perspetivas. Há de facto um turismo mais indiferenciado que por diferentes razões descobriu Lisboa como um destino de eleição. Mas um dos ângulos é também o do empreendedorismo. Todas estas dinâmicas convergem. O que toda a gente procura é um sítio onde se sinta bem acolhida. Lisboa tem neste momento um posicionamento internacional muito simpático num mundo onde infelizmente vemos sinais de algum fechamento e de aversão ao que vem de fora. Lisboa e Portugal estão em contraciclo. Queremos ser um país aberto e uma cidade amiga da inovação – e para isso precisamos de ter um ambiente verdadeiramente cosmopolita. Além da dinâmica das férias, há a das pessoas que estão a descobrir Lisboa como o local ideal para fazerem os seus projetos de vida em diferentes áreas. Quando falamos de startups falamos da vida dos empreendedores, ao contrário de um investimento decidido por um CEO ou diretor financeiro de uma multinacional que vê apenas o custo-benefício de uma nova unidade produtiva onde que que esteja. Quando falamos de startups, falamos da vida dos fundadores, do local onde vão viver nos próximos anos. 

– A perspetiva de aumento do custo de vida em Lisboa pode ser limitadora?

M.F.  Isso é inevitável. Há um dinâmica que tem que ver com esse efeito indutor, que nunca é preto nem branco, na economia local. É positivo porque nos puxa para patamares mais próximos daqueles que vemos noutras geografias. Por outro lado, tem outros efeitos que têm de ser acautelados na dinâmica da cidade. Mas é um bom problema, não é um mau problema para gerir.

– Não afasta os empreendedores?

M.F. – Não afasta porque isto tem de ser sempre visto em termos relativos. Comparativamente, Lisboa continua a ser também desse ponto de vista muito interessante. Mas muito por uma razão da qual as pessoas não estão muito cientes. Qual é hoje o factor crítico principal quando se fala no mundo da inovação? É o talento, que é um recurso muito escasso e muito disputado. O hub digital da Mercedes é um excelente exemplo. A Mercedes percebeu que, se quer ter 400 engenheiros de topo a desenvolver a sua área digital para o mundo inteiro, tem de pagar, oferecer condições, mas também oferecer garantias de qualidade de vida. De certeza que Lisboa não estava em competição com cidades onde viver seja menos agradável. Todas as empresas sabem que precisam de ir para os sítios onde as pessoas queiram viver. Temos de tirar proveito disto, é isto que vai permitir alavancar o crescimento económico do país de uma forma completamente diferente. 

– Este desenvolvimento, não só aqui, mas no resto da Europa, é de certa forma devedor da crise financeira de 2008 e da crise de dívida europeia, ao criar-se um novo tipo de realidade laboral para a maioria dos jovens?

M.F. – Só na medida em que veio tornar evidente que estávamos numa fase de transição de paradigma das relações económicas é que a crise financeira global contribuiu para isto. Decretou de uma forma muito notória o fim do paradigma de um emprego estável para a vida nas grandes corporações. Ao trazer tamanha precariedade para as relações laborais, tamanho volume de desemprego em sectores e empresas como nunca ninguém tinha imaginado, ao trazer para a falência empresas e sectores inteiros que se julgava estarem à margem de qualquer embate – logo, a banca, por exemplo –, há um efeito positivo dessa negatividade toda. Do ponto de vista cultural, as pessoas percebem que se perdeu a atratividade de um emprego para  a vida, que era a segurança e estabilidade. É mais fundo do que isso também. Tem que ver com a necessidade de a pessoa se realizar mais no mundo do trabalho. Mas há uma coisa anterior à crise que concorreu de forma evidente para isto tudo e que se chama qualificação. Este não é um surto de empreendedorismo de ocasião. Não estamos a falar de empreendedores no sentido do desenrasca, é o contrário disso. Estamos a falar do empreendedorismo do mais qualificado que há ao falarmos de inteligência artificial, ‘machine learning’, Internet das Coisa, robótica, ‘apps’ digitais. São coisas que só são possíveis a partir de gente  muito qualificada. Isto é o resultado, ao contrário, daquilo que se dizia nos anos 1990: que o atraso económico de Portugal tinha que ver com a falta de qualificações da sua população ativa. Isto não é uma coisa só gira, não é uma coisa engraçada – está a mudar, e muito, o nosso paradigma. Está a criar riqueza e está a criar emprego. 

– O anterior secretário de Estado português da Indústria, João Vasconcelos, deu conta este ano de uma parceria com Macau com a qual será possível algumas startups de Macau poderem estabelecer-se em Lisboa, e o mesmo para empresas portuguesas em Macau. A Startup Lisboa está envolvida?

M.F. – Sim. Ainda antes de o secretário de Estado ter ido à China, numa viagem em que a própria Startup Lisboa também participou, já tínhamos recebido a visita do secretário da Economia do governo de Macau [Lionel Leong]. Visitou a Startup Lisboa e ficou de tal forma impressionado com o que aqui viu que passado um mês tinha enviado uma comitiva para estudar e perceber o que se estava a fazer. Logo aí começámos a desenhar os termos dessa parceria. Temos vindo a desenvolver contactos. Passará por um programa assente na lógica de intercâmbio, criando-se condições favoráveis para que startups portuguesas possam instalar-se em Macau e empreendedores de Macau possam instalar-se em Lisboa. É algo que ainda está por densificar. Já pusemos do nosso lado os nossos contributos. Está do lado de Macau, agora, dar andamento a esse processo.

– Há uma ideia de quando isso pode acontecer?

M.F.  O mais rapidamente possível. É algo queremos fazer a partir de agora. Não há nada que justifique que tarde. 

– Passará por oferecer espaço e serviços?

M.F. – Sim. Em vez de se chegar desamparado a um sítio, permite um ‘soft landing’ e, depois, beneficiar de algum ‘networking’ institucional para estabelecer contactos com os mercados para onde se pretende apontar. 

– Da parte de Macau falta criar condições equivalentes? É isso?

M.F. – Não. Falta no fundo formalizarmos e densificarmos esta ideia que começou a ser trabalhada, e fechá-la em termos concretos com números – quantos vamos acolher por ano, como se faz o mecanismo de seleção. A ideia avançou rapidamente, trocámos contributos. Falta o tempo para fechar os termos práticos dessa parceria de um lado e do outro. 

– Estão a trabalhar há mais de cinco anos no apoio a estas empresas. Consegue identificar uma proporção de casos de sucesso, e quais são os factores que mais o determinam?

M.F. – É muito difícil. O sucesso é o quê? É a quantidade de statups que já levantaram investimento?

– Que abrem atividade e persistem na atividade?

M.F. – Sim, mas algumas falham porque supostamente tinham um modelo de negócio que era altamente escalável, propuseram-se ir para muitos sítios, e o negocio existe mas não saiu do modelo mais local. Outros já foram investidos em milhões por ‘venture capitalists’, e ‘business angels’ antes disso, e no entanto continuam a não conseguir ter um modelo de negócio que consiga gerar só por si sustentabilidade. Noutros, é o número de trabalhadores que empregam? Não é fácil. Implicaria conseguir algum consenso de quais são as métricas de aferição desse sucesso. Em segundo lugar, não houve de início nem o cuidado nem a estrutura de conseguirmos colecionar e tratar essa informação. Temos uma impressão. O que posso dizer é que, pelo facto de sermos uma incubadora muito seletiva, isso ajuda a termos métricas mais simpáticas. Em relação à segunda parte da pergunta, não há um receituário. Mas há algumas tendências que se conseguem perceber. Desde logo, haver equipas multidisciplinares. É muito difícil haver sucesso numa equipa de três engenheiros, que podem ser todos brilhantes em engenharia, sem haver ninguém com competências no desenvolvimento de negócio e em marketing. Quanto mais a equipa é equilibrada de início e tem nos co-fundadores perfis complementares, mais ajuda ao sucesso. A segunda tendência tem que ver com a capacidade de estar exposto a ambientes de muito enriquecimento cultural: viajar, ir para programas de aceleração, ter uma boa fluência linguística. Depois, os ‘soft skills’: capacidade de estabelecer boas redes de contactos e de perceber que o negócio tem muito que ver com esta componente relacional  e não só com as características de um produto. 

Maria Caetano

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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