A situação económica de Moçambique está em queda livre graças à crise financeira do Estado que agora começa a chegar às pessoas.
“Eu fiquei afetado em cascata [com a crise]. Vendo roupas, mas há um ano que as pessoas investem mais em comida. Baixei a venda de 10 para três peças por dia”, descreve Paiva António, antigo vendedor nas ruas de Maputo, que teve de adiar o casamento por causa da crise, agravada há um ano pela descoberta de dívidas ocultas por parte do Estado. Deixou Maputo, fez mil quilómetros de estrada em direção ao norte e agora tenta a sorte em Chimoio, capital da província de Manica.
“É o povo, que nada tem, que vai sentir a dor de tudo isto. Somos nós que vamos pagar por estas manobras todas”, diz Maria Macuacua, comerciante de 43 anos, no interior do mercado de Xiquelene, um dos principais de Maputo. Maria Macuacua é analfabeta e sabe “muito pouco” sobre economia, mas os 16 anos de experiência no mercado levam-na a associar a crise que o país atravessa ao que chama de “manobras”.
“Não há dinheiro no mercado. As pessoas não estão a comprar nada aqui e o argumento é de que o dólar está caro”, lamenta a comerciante, enquanto promove o “melhor tomate da zona” na sua banca improvisada no meio do caos habitual de Xiquelene. Produtos essenciais como arroz, óleo e sabão duplicaram de preço nos mercados, reduzindo a margem de reserva nos salários e consumindo rendimentos para investimento.
Desde a semana passada, o país integrou formalmente as dívidas escondidas do Estado nas contas nacionais, num total de 1,4 mil milhões de dólares de empréstimos feitos pelo Governo mas não declarados. Esta decisão do parlamento marca um importante passo no escândalo financeiro que colocou Moçambique em ‘default’ e cortou o financiamento internacional ao país.
Em fevereiro do ano passado, nas vésperas da reestruturação da dívida da Empresa Moçambicana de Atum (Ematum), os investidores e as agências de ‘rating’ começam a aperceber-se das dificuldades financeiras do país em honrar os compromissos financeiros. O que se seguiu, no entanto, foi um conjunto de notícias financeiras negativas para Moçambique, a começar pela divulgação, em abril, pelo Wall Street Journal, de um empréstimo contraído em 2013 pela Proindicus, no valor de 622 milhões de dólares.
Os credores internacionais e o Fundo Monetário Internacional cortam o financiamento ao país e o Governo assume que há mais dois empréstimos não divulgados, um feito pela Mozambique Asset Management, em 2014, no valor de 535 milhões de dólares, e ainda um terceiro, contraído pelo Ministério do Interior, no valor de 221 milhões de dólares.
Ainda em abril do ano passado, é também conhecido o prospeto confidencial preparado pelo Ministério das Finanças, que coloca a dívida total prevista para 2015 em 11,1 mil milhões, ou seja, 1,6 milhões de dólares acima dos números oficiais até então.
“Desde a descoberta das dívidas, houve uma subida incrível dos preços de produtos essenciais e uma queda livre de todos os planos pessoais”, conta José Machava, funcionário público em Chimoio. Machava mora com seis filhos e tinha planos para fazer obras nas paredes de casa, mas a crise obrigou-o a adiar os trabalhos. O salário apenas chega “para pagar o aluguer da casa e a comida”: as contas da escola [das crianças] e hospital vão “a conta-gotas”, descreve.
Já no final do primeiro semestre, a dimensão do problema tornou-se ainda mais clara: sem ajuda financeira externa e com as contas públicas fortemente afetadas pela conjuntura internacional, nomeadamente os preços baixos das matérias-primas, o abrandamento da economia chinesa e o adiamento das decisões de investimento pelas petrolíferas, Moçambique enfrentou uma crise de divisas e um aumento dos preços generalizado.
O FMI exigiu uma auditoria internacional à dívida antes de retomar as negociações sobre ajuda financeira e, em outubro, o Governo resolve mudar de estratégia: assumiu num encontro com investidores, em Londres, que não tem dinheiro para pagar as dívidas internacionais e exigiu uma reestruturação das condições de pagamento. Os credores reagiram mal e criou-se um braço-de-ferro que se prolonga há seis meses, e que só deverá ser quebrado quando a auditoria entretanto encomendada à consultora Kroll for divulgada, o que pode acontecer só no verão, já que a Procuradoria-Geral da República também conduz a sua investigação, que pelas notícias divulgadas, incide também sobre o atual Presidente da República, que era ministro da Defesa quando as empresas públicas realizaram os empréstimos escondidos.
Com o falhanço, já em janeiro deste ano, do pagamento da primeira prestação das ‘eurobonds’ que foram emitidas por troca das obrigações da Ematum um ano antes, Moçambique entrou em incumprimento e as agências de ‘rating’ desceram a avaliação do crédito soberano, o que, na prática, impossibilita o país de aceder aos mercados financeiros, não só pelas altas taxas de juro exigidas, mas também pelo histórico de não pagamento.
O debate a nível internacional toca também noutro ponto: como foi possível duas empresas públicas receberem mais de mil milhões de dólares de investidores internacionais sem que o negócio tenha sido noticiado, e sem que os investidores se acautelassem face às condições financeiras dessas empresas? Várias ONG e alguns movimentos políticos defendem que Moçambique não deve pagar a dívida, porque é ilegal, e as autoridades financeiras dos Estados Unidos, Reino Unido e Suíça investigam também a atuação dos bancos intermediários – o Credit Suisse e o russo VTB – nestas operações.
Ernesto Magaia, estudante do 12º ano na Escola Secundária de Laulane, Maputo, vê as dívidas ocultas como uma mancha na reputação de um país que “já tinha muitos problemas”. O jovem, vendedor informal de recargas para telemóvel na praça do mercado de Magoane, arredores da capital moçambicana, onde vive com três irmãos e a avó é duro com os políticos. “É uma situação que marca a nossa imagem internacional, numa altura em que o país ainda tinha a crise política [que opõe o Governo e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), maior partido de oposição]”, referiu.
“Fomos quase sempre um exemplo na região e, pela nossa condição, devíamos ter tentado garantir que essa imagem permanecia. O pior de tudo é que, no fundo, quem terá de apertar os cintos somos nós, o povo”, conclui.
Estevão Azarias Chavisso e André Catueira-Exclusivo Lusa/Plataforma