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O ano letivo marcado por greves escreve-se com instabilidade

Diário de Notícias

“O problema não foi a greve, feita de uma forma a que não estávamos habituados. Foi um ano de greve, em cima de dois anos de pandemia. Não sei que impacto vai ter isto na vida destas crianças.” Filomena Marques, mãe de dois alunos do Ensino Básico (2º e 4º ano), fala ao DN em jeito de balanço do ano letivo enquanto inscreve os filhos num ATL para os próximos dois meses. Na verdade, foi lá, numa vila dos arredores de Coimbra, que passaram este ano mais tempo do que era suposto, sempre que as professoras fizeram greve às primeiras horas. Filomena, 41 anos, é a cabeça de uma família monoparental. Trabalha num lar de idosos e diz que beneficiou da compreensão da IPSS entidade empregadora, sempre que se verificou algum atraso. Mas não foi assim com todos os pais. E nem esse será o cerne da questão, na hora da contabilidade do ano letivo que agora chega ao fim.

A presidente da Confap (Confederação das Associações de Pais), Mariana Carvalho, não tem dúvidas de que este ano letivo – que terminou a 7 de junho para os 9º, 11º e 12º anos e termina esta semana para restantes anos do 2.º e 3.º ciclos e do Secundário – foi muito pouco positivo para os alunos e para as famílias. “Nós vínhamos de três anos letivos complicados, na sequência da pandemia. E aquilo que verificamos é que, além de não regressarmos melhores e mais amigos uns dos outros, estamos todos muito mais cansados e com um nível de sensibilidade e irritação muito maior”, nota esta representante dos pais, que não atribui exclusivamente às greves dos professores as características pouco abonatórias do ano letivo.

“Depois da pandemia tivemos a guerra, depois veio a inflação, e todas as pessoas notam o aumento do custo de vida, que afeta maioritariamente as famílias com filhos em idade escolar. Foram essas que tiveram que aumentar o horário de trabalho, para conseguirem ter dinheiro até ao fim do mês. Isso quer dizer que ausentaram-se ainda mais horas das suas casas”, refere. “No meio disto temos o descontentamento profundo dos professores, que entendemos, mas o estilo de greve trouxe desagrado e instabilidade aos pais”, sublinha Mariana Carvalho.

“Não conseguimos uniformizar o impacto da greve, neste ano que agora termina, porque temos situações em que os alunos estiveram sem aulas um ou dois dias, mas há outros , por exemplo durante o mês de janeiro, em que praticamente não tiveram aulas”, afirma a presidente da Confap, que aponta sempre um outro problema: “Continuámos a ter alunos sem professor em determinadas disciplinas. E isso tudo deixa-nos muito tristes e preocupados. Foi um ano muito cansativo, marcado pela instabilidade e com muito mais stress do que seria habitual”.

Mariana Carvalho recorda os casos reportados à Confap de “pais prejudicados nos seus trabalhos por chegarem atrasados”, em consequência da greve, havendo mesmo casos de dispensa de trabalhadores. E, sublinhando sempre a defesa dos professores, teme que o próximo ano letivo continue nesta senda. “Não vejo uma tentativa de resolução séria, no que respeita a ambas as partes. Existem situações que são de divergência, mas também há muitos pontos com que toda a gente concorda”.

Aumentam as explicações e apoio ao estudo

Embora não existam (ainda) dados que permitam aferir do impacto que este ano letivo teve nas aprendizagens dos alunos, criou-se entre os pais a ideia de que era preciso um apoio extraordinário, nomeadamente por causa dos exames nacionais – que pesam tanto ainda no subconsciente das famílias. Talvez assim se justifique a crescente abertura de Centros de Explicações e Apoio ao Estudo. A maioria funciona também como uma espécie de ATL (Atividades de Tempos Livres), reconvertendo-se nos meses de verão como organizadores de campos de férias.

Cláudia Ferreira ainda não soprou a vela do primeiro aniversário do centro que abriu, em setembro de 2022, em Leiria. É um dos muitos que se anunciam pela cidade. “Decidi abrir este Centro de Estudos e Explicações por sentir que existe uma lacuna muito grande ao nível do apoio efetivo aos alunos”, conta ao DN, explicando que o Centro Páginas Recheadas “não é um prolongamento da escola, porque o nosso serviço é personalizado. Centramo-nos nas características de cada aluno e o nosso foco é a individualidade de cada um, ajudando-os a ultrapassar dificuldades, a tornarem-se autónomos e confiantes, a desenvolver o gosto pelo estudo e pelo conhecimento, de acordo com as suas expectativas e objetivos”. Tudo aquilo que deveria acontecer na escola, aos olhos do estatuto do aluno e da maioria dos regulamentos internos.

E é por esta altura, à medida que se aproximam os Exames Nacionais, que a procura aumenta exponencialmente. Cláudia tem por termo de comparação os centros em que já trabalhou. E, sim, este revelou-se um bom ano para abrir um negócio assim. A procura tem sido muita.
“Nota-se um aumento da procura de explicações nesta altura, principalmente por parte de alunos do 9º ano e Secundário. Ainda há alunos que só procuram explicações nesta altura, uns por questões económicas, outros por acharem que conseguem sozinhos, acumulando dificuldades e tornando a recuperação e revisão de matérias mais difíceis”. É aí que entra a figura do explicador, que as famílias encaram como “salvador” do ano, tantas vezes.

Um braço-de-ferro sem fim à vista

Filinto Lima, presidente da Associação do Diretores Escolares, recua mais longe do que este 2022/23. “Os últimos anos letivos têm sido bastante atípicos. Primeiro foi a pandemia, que afetou muito as nossas vidas e os anos letivos que apanhou, e o último ano marcado por este braço-de-ferro – cada vez mais intenso – entre o Ministério da Educação e os Sindicatos de Professores.”

O professor, que há anos ocupa funções de direção no Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, e acumula com a liderança da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), admite que não foi fácil gerir o processo, numa altura em que ainda não se vislumbra acordo entre governo e sindicatos. “Nós somos líderes de escolas, enquanto diretores, mas eu, a dado momento, parecia mais um gestor de emoções”, afirma ao DN, não assacando apenas à(s) greve(s) essa responsabilidade, “mas sobretudo uma consequência da pandemia.” “Estão todos mais impacientes: professores, alunos, funcionários e os próprios pais. Mas apesar de tudo, é importante dizer que os professores continuaram a dedicar-se de corpo e alma aos seus alunos, preparando-os o melhor possível, quer para os exames, quer para o resto”.

Filinto Lima considera mesmo que “neste ano letivo os alunos não saíram prejudicados com a greve dos professores. O mesmo não aconteceu com o ensino à distância, que, isso sim, os prejudicou muito”. “Na maioria das vezes a greve aconteceu durante uma hora, ou um dia. E por isso facilmente os alunos, se perderam alguma matéria, conseguiram recuperar essas aprendizagens com estratégias que nós usamos no dia a dia”, enfatiza este diretor, considerando que “quem a certa altura saiu penalizado foram os pais: não sabiam se levavam ou não os filhos para as escolas, se elas iam abrir ou não, sobretudo no primeiro ciclo”.

Além de Filinto, há mais 810 diretores na Escola Pública em Portugal. A maioria julgava que ao longo deste ano letivo seria possível encontrar um entendimento entre os sindicatos e o Ministério da Educação, a propósito das reivindicações dos professores. “Mas nesta altura já admito que este braço-de-ferro vai entrar pelo próximo ano letivo. Mesmo que nesta altura esteja tudo de olhos postos na decisão do Presidente da República, relativamente ao diploma da carreira docente.”

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Que impacto poderão ter tido as greves neste ano letivo?

As greves terão tido algum impacto neste ano letivo, mas esse não é comparável – nem de perto, nem de longe – ao facto de termos centenas de turmas e milhares de alunos sem aulas por falta de professor, desde o princípio do ano letivo. Nalgumas escolas durante meses, noutras isso continuou a prolongar-se. Temos aqui um problema sério de falta de professores; uma carreira que realmente não é atrativa, para além de um conjunto de outras questões que se prendem com a burocracia e indisciplina. O próprio modelo de gestão autocrático que temos nas escolas, e um conjunto de fatores que a tornam uma profissão de desgaste e exaustão, além da precariedade, e do afastamento das famílias.

E isso tende a afastar os jovens candidatos da profissão?

Claro. Outra questão – que não está resolvida, e em que o ministério ignorou mesmo críticas e sugestões da Provedora de Justiça – tem a ver com a mobilidade por doença. As regras alteraram-se e mesmo aqueles professores que veem reconhecido o direito à mobilidade hoje têm ali um problemas porque o processo passou a ser feito através de quotas. Ou seja, só 10% das vagas em cada escola são reservadas aos professores em mobilidade. O que acontece é que nós temos cerca de 3000 professores com direito à mobilidade e que tiveram que concorrer para fora e não ficaram perto do sítio onde deveriam estar. Há casos inacreditáveis, de pais com filhos autistas, oriundos do norte do país e que tiveram de ir para os Açores. São situações absolutamente dramáticas.

Quer dizer que, na sua opinião, o braço-de-ferro entre professores e governo se mantém?

Apesar de toda a propaganda que o governo, dizendo que tem dado passos importantes e tem feito uma negociação de boa fé, na verdade não está a fazer rigorosamente nada disso. Está de facto a deixar os professores e as escolas com cada vez maior instabilidade; não consegue resolver o problema da falta de professores, não está a resolver os problemas que existem, não faz nada em relação à indisciplina – ainda há dias houve um professor agredido com uma barra de ferro, e não se ouve uma palavra do ministro da Educação, o que é uma autêntica vergonha. A única coisa que vemos é essa manobra de tentar virar os pais contra os professores.

E há razões para isso?

Claro que não. Os pais têm de compreender que os professores estão completamente no seu limite, com anos e anos a dar o melhor de si, e todas as suas reivindicações têm sido completamente ignoradas. Há uma falta de respeito total pelos professores, e uma falta de justiça dentro das escolas.

Mesmo com a chamada “correção de assimetrias” e “acelerador de carreiras”?

No fundo, o que o Ministério está a fazer é dar umas migalhas a meia dúzia de professores, que depois retira aos outros e não dá rigorosamente nada. Portanto, vai criar ainda mais injustiças. Veja-se o caso das vagas para o 5º e 7º escalão. Para alguns professores foi criada a isenção de vaga. É o caso daqueles que durante todo o período do congelamento de carreiras – 9 anos, quatro meses e dois dias – estiveram sempre ao serviço e entraram no sistema antes de 2005, isto com horários completos e anuais. O que é que isto significa? Uma canalhice, na verdade. Porque se o professor tiver 9 anos, 4 meses e 1 dia, já fica afastado. E como imagina, a grande maioria dos contratados não teve sempre horários completos e anuais…

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