Era uma vez um filme com atrasos. Em Portugal foi visto numa sala meio vazia do Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, em outubro de 2020 no Caminhos do Cinema Português. Depois, Aos Nossos Filhos, ficou num caldeirão de filmes incómodos ao regime de Bolsonaro, juntamente com Medida Provisória, de Lázaro Ramos, recentemente estreado entre nós. Entretanto, finalmente, no ano passado, a estreia em França e no Brasil.
É o regresso de Maria de Medeiros à realização de uma longa-metragem de ficção, desta feita uma adaptação da peça homónima de Laura Castro, onde se abordava o processo de maternidade por inseminação artificial de um casal de lésbicas e o choque geracional com a mãe, uma mulher ativista e traumatizada com os tempos da luta contra a ditadura. Maria foi a atriz na peça mas no filme quis dar o papel de mãe à imortal Marieta Severo: ” A peça foi pensada para a Marieta. Mas na altura ela estava ocupada e a Laura ficou sem atriz. Depois, algo milagroso: a peça foi escrita ao som de Ivan Lins e da canção Aos Nossos Filhos e, por coincidência, na casa de uns familiares, ela ouve essa mesma canção na minha voz. E eu cantei essa canção porque fiz um documentário, Repare Bem, que tinha essas mesmas personagens, mãe e filha. Foi um sinal! Mas para o filme era claro que tínhamos de voltar para a Marieta, que, antes de tudo, tinha a idade certa. Eu não podia fazer esta personagem que tem a idade da minha mãe, apesar de no teatro ter gostado de fazer a composição. A verdade é que no cinema não acredito nada nas coisas coladas na cara”.
Voltar à ficção no cinema brasileiro. Podemos falar de prazer?
Sim, prazer. Sobretudo porque havia uma grande intimidade com a história. Isso e um desejo de ampliar as personagens de que falávamos no palco mas que não se viam. Além de tudo, tinha um enorme desejo de filmar o Rio de Janeiro. Estava com a sensação que no cinema nunca encontrava o Rio que eu percebia, quer na sua modernidade quer nessa vontade de sair dos clichés. Para mim, era importante mostrar a vida de uma classe média que está ali a lutar, gente com contradições muito fortes e com a vida muito cara, muitos acabam por ir viver para a favela. E ainda quis mostrar o lado vertical da cidade. Durante a découpage dei-me conta que queria um bocado homenagear o Jacques Tati devido às situações que a geografia impõe ao nível de verticalidade, situações caricatas, divertidas… Estamos sempre obrigados a estar em picado e contra-picado, há sempre alguém a olhar para cima, alguém a olhar para baixo. Para além disso, queria mostrar o verde espetacular e luxuriante, mas também aquele colorido das favelas. Há muito tempo que queria mostrar a plástica do Rio tal como a recebo.
Este projeto não lhe cai de pára-quedas, tem tido uma relação artística contínua com o Brasil.
Sinto uma grande afinidade com o Brasil. E quando a Laura veio a Lisboa também se lembrou de Santa Teresa, no Rio. Entre nós há essa intimidade bonita. E estas contaminações com o Brasil são sempre muito boas, sou mesmo muito apaixonada pelo Brasil… E óbvio que fiquei muito escandalizada com esta época terrível que atravessou.
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