Início » Um passado presente: a importância lusófona na definição do sistema de forças

Um passado presente: a importância lusófona na definição do sistema de forças

Martim FialhoMartim Fialho

A recente conjuntura internacional pode beneficiar os países lusófonos na disputa pelo apoio das grandes potências, segundo afirma Priscilla Roberts, professora na Faculdade de Gestão da Universidade Cidade de Macau, em entrevista ao PLATAFORMA. A académica debruçou-se sobre a relação histórica e atual entre a China e as nações da lusofonia, o legado diplomático de Amílcar Cabral e a importância de Cabo Verde durante o período da Guerra Fria

A posição da China em 1955 (durante a Conferência de Países Afro-Asiáticos) era favorável ao anticolonialismo. Nesta altura, a China já tinha planos em estabelecer relações com os países lusófonos a longo prazo?

Priscilla Roberts – Na altura, o aval anticolonialista da China não fazia parte de um plano estratégico económico elaborado, mas sim parte da retórica padrão utilizada pelos países africanos e asiáticos. O que a China fez, contudo, a partir de meados dos anos 50, foi prestar ajuda a países independentes. Estes poderiam ser úteis em termos de aliviar as sanções económicas internacionais impostas à China, e votar na Organização das Nações Unidas, quer a favor do fim de tais sanções, quer a favor da adesão da China a esta mesma organização internacional.

Leia também: Deputado critica proposta de substituir “nomes colonialistas” das ruas em Macau

Amílcar Cabral mencionou que o principal objetivo da assistência chinesa na altura da Guerra Fria era tentar “converter a Guiné-Bissau e o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde nos seus futuros lacaios”. Hoje em dia, como vê a relação entre estes países?

P.R. – Creio que será demasiado forte caracterizar estas relações como relações em que a China procurava transformar estes países em “lacaios”. Mas há sem dúvida um forte elemento transacional são relações muito semelhantes às de patronos-clientes. Em troca de auxílio económico, a China procura depois uma série de vantagens e apoios. Por exemplo, apoio eleitoral na ONU e noutras organizações internacionais onde estes Estados clientes pertencem, bem como acesso a recursos minerais, marítimos e estratégicos.

Amílcar Cabral mostrou alguma perspicácia em lidar com países como a Rússia e até a China, mostrando que países pequenos podiam negociar com potências maiores. Como vê o atual equilíbrio de poderes? A flexibilidade dos países pequenos ainda existe?

P.R. – Depende muito das circunstâncias específicas de cada país e também das situações que enfrentavam no terreno. O pior momento para os países lusófonos foi provavelmente os anos imediatos depois da Guerra Fria, os anos 90 e 2000, quando a China era praticamente a única carta do baralho para estas nações. A atual situação internacional de competição entre a China e as potências ocidentais, com a União Europeia e a Austrália preocupadas com o aumento do poder e influência da China (e mesmo a Rússia, pelo menos antes da invasão da Ucrânia, a querer aumentar a sua influência em África), oferece mais possibilidades aos pequenos países africanos lusófonos (e também a Timor-Leste) de jogarem um contra o outro pelo apoio destas nações.

Leia também: Presidente do Congo em Bissau para homenagear Amílcar Cabral e ‘Nino’ Vieira

Os microestados têm melhores desempenhos diplomáticos quando há mais do que uma grande potência a competir pelos seus favores e recursos. Mas ainda não é clara a maneira como estas dinâmicas se irão desenvolver, especialmente tendo em conta os fatores nocivos da Covid-19, o atual abrandamento económico chinês, e os contínuos controlos fronteiriços implementados pela própria China devido à pandemia.

Terence Todman, antigo embaixador dos EUA na Guiné-Conacri, realçou as “excelentes relações mantidas desde o início” com Cabo Verde e Guiné-Bissau, devido aos contactos constantes com Amílcar Cabral antes da independência. Qual era o interesse dos EUA em retirar a ilha da esfera China/URSS?

P.R. – O interesse era devido a razões estratégicas e políticas.

Em primeiro lugar, Cabo Verde é um grupo de ilhas no meio do Oceano Atlântico, que outras potências poderiam ver como o local ideal para bases navais (bem como um acesso a recursos marinhos úteis, especialmente stocks substanciais de peixe).

Os EUA quiseram negar estes bens e recursos a rivais estratégicos (primeiro a Alemanha, depois a União Soviética e agora a China).

Leia também: Cabo Verde soma recordes no turismo

Em segundo lugar, existe uma grande e politicamente bem conectada comunidade cabo-verdiana nos estados americanos de Rhode Island e Massachusetts.

Isto significava que senadores influentes como Claiborne Pell, de Rhode Island, e Edward Kennedy, de Massachusetts, estavam dispostos a orientar uma parte substancial da ajuda financeira dos EUA para Cabo Verde (a população norte-americana é apenas uma parte da diáspora cabo-verdiana, com mais cabo-verdianos a viver fora de Cabo Verde do que no país).

Vale também a pena notar que, até à sua morte prematura, Amílcar Cabral era um diplomata hábil, altamente eloquente e carismático, tendo apelado a um espectro político vasto que não só incluía a esquerda comunista, mas também políticos moderados.

Cabral era o rosto aceitável da revolução anticolonial. Foi convidado a falar na ONU e até teve direito a uma audiência papal.

No final dos anos 60, os EUA tinham chegado à conclusão de que era pouco provável que Portugal conseguisse manter o controlo político sobre a Guiné-Bissau e as suas outras colónias africanas durante muito mais tempo. Fazia, portanto, sentido desenvolver boas relações com os insurgentes que provavelmente estariam no poder em breve.

A atual situação internacional de competição entre a China e as potências ocidentais oferece mais possibilidades aos pequenos países africanos lusófonos (e também a Timor-Leste) de jogarem um contra o outro pelo apoio destas nações

Referiu em 2020 que a China estava a prestar muito mais ajuda financeira a São Tomé e Príncipe do que a qualquer outra nação. Isto foi devido à falta de influência que a China teve em Cabo Verde durante o início da Guerra Fria?

P.R. – Diria que foi mais uma função do facto de que, mesmo em comparação com Cabo Verde e outros pequenos estados lusófonos, São Tomé e Príncipe era particularmente modesto e insignificante em termos de população. O seu maior trunfo, em termos daquilo que era o interesse chinês, era provavelmente o direito de voto que possuía na ONU e noutras organizações internacionais.

Leia também: China formaliza junto da ONU novas metas climáticas

É de recordar que houve também um envolvimento soviético no país, tendo sido construído um transmissor de rádio nas ilhas durante os anos 80. Havia também as atividades dos Peace Corps dos EUA e da Agência para o Desenvolvimento Internacional (AID), bem como a existência de um transmissor Voice of America (VOA) no início da década de 90. É ainda necessário realçar que durante quase 20 anos, de 1997 a 2016, São Tomé e Príncipe mudou o reconhecimento diplomático da China para Taiwan.

São Tomé e Príncipe não era um alvo de forte interesse para o bloco soviético ou ocidental. Qual a razão que levou a China a apoiar financeiramente o país lusófono tendo em conta a sua falta de recursos naturais e infraestruturas portuárias? Não estaria Cabo Verde na mesma situação (segundo Francis McNamara, antigo embaixador americano em São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, a ilha era vista como um país pobre em recursos naturais)?

P.R. – Cabo Verde, embora pobre, estava muito melhor em termos de ligações internacionais úteis, graças em parte às suas extensas ligações com a diáspora. O aeroporto da ilha era um importante ponto de paragem e de trânsito útil para voos de e para África a partir de uma grande variedade de países. As instalações portuárias podiam proporcionar algum valor estratégico na eventualidade de se criarem bases navais. A partir de 1990, a ilha teve um Governo representativo multipartidário e eleições democráticas. E, ao contrário da Guiné-Bissau, Angola, ou Moçambique, Cabo Verde nunca sucumbiu à guerra civil.

A ilha do Atlântico produziu também alguns líderes interessantes e politicamente sábios, que em muitos casos tinham ascendência maioritariamente ocidental. Exemplo disto foi o antigo Presidente Jorge Carlos Fonseca, um advogado e poeta que lecionou durante um ano (1989-1990) na Universidade da Ásia Oriental, tendo estabelecido um programa de direito português antes de regressar a Cabo Verde para entrar na política local. Acresce ainda que apesar de Cabo Verde ser pequeno tanto em tamanho (1.557 milhas quadradas) como em população (426.285 em 1999 e 549.935 em 2019), São Tomé era apenas um quarto do tamanho (386 milhas quadradas), com uma população que era apenas cerca de um terço da de Cabo Verde (135.886 em 1999, 215.056 em 2019). Além disto, São Tomé e Príncipe não possuía a comunidade útil e solidária da diáspora cabo-verdiana.

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!