Moradores de Hong Kong formaram filas nesta quinta-feira (24) para comprar a última edição do jornal pró-democracia Apple Daily, que se viu obrigado a encerrar as atividades após a aplicação de uma drástica lei de segurança nacional que acabou com 26 anos de críticas da publicação às autoridades chinesas.
A morte repentina do popular tabloide é o golpe mais recente às liberdades de Hong Kong e aumenta a preocupação sobre a possibilidade de a cidade prosseguir como um centro de imprensa, no momento em que a China ataca a dissidência.
No bairro operário de Mongkok, centenas de pessoas fizeram filas desde a madrugada para obter a edição final. Alguns gritaram “Apple Daily, vamos nos encontrar de novo”.
A capa inclui um fotografia dos jornalistas se despedindo de uma multidão do lado de fora da sede da publicação.
“É muito chocante”, declarou à AFP uma mulher de 30 anos que se identificou apenas como Candy.
“Em duas semanas as autoridades conseguiram usar esta lei de segurança nacional para acabar com uma empresa legítima”, criticou.
Horas depois, muitas pessoas exibiam os exemplares do jornal no distrito Central, coração financeiro da cidade.
“Tudo foi tão repentino”, lamentou um estudante, que se identificou apenas com o primeiro nome, Tim. “Acho que Hong Kong entrou em uma era de trevas”.
– Bens congelados –
O jornal mais popular de Hong Kong era uma pedra no sapato de Pequim, com apoio resoluto ao movimento pró-democracia da cidade e suas críticas ácidas aos líderes autoritários chineses.
O governo utilizou uma nova lei de segurança nacional para acabar com a publicação.
O principal acionista do Apple Daily, Jimmy Lai, detido por participação nos protestos pró-democracia, foi um dos primeiros acusados com base na lei, que entrou em vigor no ano passado.
Mas o capítulo final aconteceu na semana passada, quando as autoridades usaram a lei de segurança nacional para uma operação de busca e apreensão no jornal: vários executivos foram detidos e os ativos da publicação foram congelados.
Esta última ação impediu o jornal de prosseguir com os negócios ou pagar os funcionários, o que levou a empresa proprietária a decidir que a edição desta quinta-feira, com tiragem de um milhão de exemplares para uma cidade de 7,5 milhões, seria a última.
Na quarta-feira à noite, o site do jornal e suas contas no Twitter e Facebook foram removidos.
O fechamento deixa quase mil pessoas desempregadas.
“Os cidadãos de Hong Kong perderam uma organização de imprensa que ousou falar alto e defender a verdade”, afirmaram oito organizações de jornalistas em um comunicado conjunto.
A edição taiwanesa do Apple Daily, que também pertence ao empresário Jimmy Lai, anunciou que seguirá funcionando normalmente.
“Todas as filiais da Next Digital são financeiramente independentes. O funcionamento do site do Apple Daily em Taiwan não será afetado”, afirmou o grupo em uma mensagem aos leitores.
A Next Digital é a empresa proprietária dos dois jornais.
– Opiniões proibidas –
A China impôs a Hong Kong a lei de segurança nacional no ano passado, depois que a cidade foi cenário de grandes mobilizações pró-democracia, algumas delas violentas, em 2019.
A perseguição ao Apple Daily foi motivada por reportagens e colunas que supostamente apoiavam as sanções internacionais contra a China, uma opinião agora considerada ilegal.
Lai, o diretor de redação Ryan Law e o diretor-geral Cheung Kim-hung foram acusados de conspirar com forças estrangeiras para minar a segurança nacional chinesa. Os três estão detidos.
Na quarta-feira, o colunista Yeung Ching-kee foi detido com base nas mesmas acusações.
A decisão de congelar os bens do Apple Daily evidenciou os grandes poderes das autoridades para perseguir qualquer empresa considerada uma ameaça à segurança nacional.
Várias empresas internacionais de imprensa têm sedes regionais em Hong Kong, atraídas por regulamentações favoráveis aos negócios e normas de livre expressão.
Mas agora, muitos grupos de comunicação se questionam sobre a permanência em Hong Kong.
– Primeiro julgamento –
Hong Kong caiu muito no índice anual de liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras, de 18º lugar para o 80º este ano. A China permanece na posição 177 de 180 países, à frente apenas de Turcomenistão, Coreia do Norte e Eritreia.
As autoridades da China e Hong Kong exaltam a lei de segurança, pois consideram que conseguiu restaurar a estabilidade após as manifestações de 2019. Também advertiram que a imprensa “não deve subverter o governo”.
As autoridades inicialmente afirmaram que a lei afetaria apenas uma “minoria”.
Mas legislação transformou radicalmente o panorama político da cidade, da qual a China prometeu que poderia manter as liberdades e autonomia após a devolução britânica.
Mais de 60 pessoas foram acusadas com base na lei, incluindo alguns ativistas pró-democracia mais famosos da cidade.