Amélia Filimone, 34 anos, está sentada ao lado da maca onde dorme o filho, Grácio Manuel, com dois anos e corpo febril após uma madrugada de luta com a malária
“Começou a aquecer e trouxe-o para o hospital. Isto começou durante a noite”, relata à Lusa, no Hospital Distrital da Manhiça, sul de Moçambique, a duas horas da capital, Maputo.
Vista ao microscópio, uma amostra de sangue revela que Grácio tem a contagem máxima do parasita (Plasmodium falciparum) que provoca a malária e “já é considerado um caso grave”, descreve Fonseca Novela, técnico de medicina geral.
Grácio recebe soro e cerca de 12 horas depois de ter chegado ao hospital com 40º de febre, a temperatura começa a baixar, reagindo à medicação.
“Quanto mais cedo começa o tratamento, melhor o prognóstico”, sublinha.
Moçambique está entre os cinco países do mundo onde se estima que haja mais casos de malária, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A doença é responsável por quase um terço das mortes que todos os anos acontecem no país, sendo ainda mais severa no caso das crianças, causando 42% dos óbitos em menores de 5 anos.
Neste contexto, torna-se especialmente relevante o anúncio de uma investigação que pode ajudar a identificar de forma precoce formas graves de malária, orientando logo à partida o tratamento médico.
É o caso de um estudo conduzido pelo Instituto para a Saúde Global em Barcelona (ISGlobal) segundo o qual os níveis de moléculas que circulam no sangue conhecidas como microARN poderão ajudar a identificar precocemente casos de malária grave em crianças.
A investigação, publicada no portal “Emerging Infectious Diseases”, foi realizada em colaboração com o Centro de Investigação em Saúde da Manhiça (CISM), um espaço que funciona junto ao hospital onde Grácio recupera.
Alfredo Mayor, investigador do ISGlobal e coordenador do estudo, explica que este incidiu numa das caraterísticas da malária grave, o sequestro de glóbulos vermelhos infetados com o parasita em órgãos vitais, como os pulmões, rins ou cérebro.
“Isto provoca danos nos órgãos, o que, por sua vez, resulta na libertação de pequenas moléculas chamadas microARN” e com base em amostras de sangue recolhidas no hospital da Manhiça e tratadas no CISM, os investigadores descobriram que seis dos identificados eram mais elevados nas crianças com malária grave do que nas restantes.
“O que demonstrámos neste estudo é a validade destes biomarcadores” quando a enfermidade já se agravou, “mas o interesse é ter esta informação antes que a doença avance”, detalha Alfredo Mayor à Lusa.
A hipótese que os investigadores querem testar numa próxima fase é a de que “este biomarcador deve servir para os momentos iniciais, prévios, da doença”, ou seja, que “tem valor para prognóstico”.
Antes de usar a técnica para fins clínicos, é preciso “demonstrar com uma terceira prova independente que as observações se confirmam”.
Esta nova fase da investigação está no horizonte, mas ainda sem data, porque a equipa de investigadores está a procurar encontrar novos participantes, para ter novas amostras que permitam a validação – amostras que podem voltar a ser recolhidas em Manhiça ou noutros locais.
“Idealmente, também gostaríamos de ter outros indivíduos de outras áreas geográficas de África”, mas a logística complicou-se com as restrições à circulação impostas pela covid-19 e com a reorientação dos esforços médicos e laboratoriais para acabar com a pandemia, diz.
É assim nos laboratórios onde Alfredo Mayor está, em Espanha, e também na Manhiça, onde parte da capacidade técnica e humana do CISM está agora reservada para testes à covid-19.
“É muito frequente em países africanos que crianças desenvolvam doenças graves e que o clínico, sobretudo em áreas rurais”, onde a tecnologia é rara, “não consiga avaliar” se se trata de malária, uma bactéria ou vírus.
Um biomarcador como o que está a ser estudado permitiria “diferenciar a causa do estado grave da criança e dar um tratamento muito mais acertado e eficaz”, ou seja, “melhorar a vida e reduzir mortes”.
O papel do CISM na investigação acabou por ser “fundamental”, tanto ao nível da recolha e preservação das amostras biológicas, como no envolvimento com a população alvo.
A capacidade instalada e todo o pessoal permitiram “identificar crianças participantes no estudo e fazer uma caracterização clínica muito boa dos casos”, essencial para o rigor das conclusões.
O CISM foi criado em 1996 com o apoio do Hospital Clínico de Barcelona e mantém uma intensa agenda de participação em trabalhos de investigação científica, ao mesmo tempo que promove os cuidados de saúde a nível local.
Por enquanto, a malária dita que a vida de Amélia fique suspensa: é a primeira vez que Grácio sofre com a doença e a mãe ajeita-se como pode na cadeira, não vai arredar pé até que o filho acorde e volte a sorrir.
O futuro pode ser diferente e passa por trabalhos como o do ISGlobal, com a contribuição chave de Moçambique.