Ao contrário das gerações passadas, a comunidade macaense tem hoje mais posses, educação, é mais viajada e está mais ligada à cultura chinesa. “Se há 20 anos, o macaense típico era o funcionário público, hoje em dia esta noção não corresponde à verdade”, diz Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses (ADM). Hoje “não existe um protótipo do macaense em termos de como vive em sociedade e que profissão exerce”, nota.
PLATAFORMA MACAU – Começava por perguntar o que é ser-se macaense?
MIGUEL DE SENNA FERNANDES – Vou tentar fugir ao paradigma que funcionava há uns anos: que o macaense é católico e euro-asiático. Dispenso estas referências, porque acredito que hoje o termo macaense é uma noção estritamente cultural, que está alicerçada em dois elementos fundamentais. Em primeiro, ao sentimento do apego à terra e de pertença que liga este indivíduo a Macau. Quando falo em Macau, não me refiro somente o território, mas a todo um conjunto, talvez, imaterial, que tem a ver com as tradições, com a vivência da própria pessoa ou dos pais.
Em segundo lugar – e este ponto já é discutível – é essa ligação a um mundo mais vasto, que eu diria que é uma ligação à portugalidade. Não é Portugal propriamente dito, não estou a falar de nacionalidade, porque o indivíduo pode nem sequer falar português, mas reclama esse espaço cultural com a mesma veemência que os outros que dominam a língua portuguesa. Essas pessoas vibram, por exemplo, com a seleção portuguesa, é um fenómeno muito interessante.
Estes dois elementos são fundamentais, mas entretanto vão-se enxertando outros. Se a religião continua a ser o elemento caracterizador, tenho as minhas dúvidas, mas o certo é que a maior parte dos macaenses são católicos. O macaense por natureza também é um mestiço. Se tem de ser descendente de portugueses, também tenho as minhas dúvidas.
P.M. – Há quem defenda a palavra macaense para designar o natural de Macau e o macaísta para aquele que carrega esse tal sentido de portugalidade que mencionou. Faz sentido?
M.S.F. – Sim. Antigamente ninguém usava a expressão “macaense” para definir um natural de Macau. Entre os chineses, a noção de naturalidade tem muito a ver com a família. O chinês que nascia em Macau nunca diria que era de Macau, mas de Sanhui, no caso dos seus antepassados serem dessa terra.
Nós utilizávamos o macaísta ou macaense sem qualquer distinção para falar do mestiço, do português de Macau.
Hoje as coisas mudaram e, com toda a legitimidade, o termo começa a ser reclamado pela população de Macau em geral. A comunidade chinesa começa a ter esta noção de pertença.
Hoje em dia faz algum sentido utilizar a expressão macaísta para falar desse macaense. Houve tempos em que se entendia que era um termo pejorativo o que, no meu ponto de vista, não correspondia à verdade.
P.M. – E que perfil traça desta comunidade macaense de que falamos?
M.S.F. – Se há 20 anos, o macaense típico era o funcionário público, hoje em dia esta noção não corresponde à verdade. Muitos dos filhos destes funcionários públicos passaram a exercer outro tipo de atividades. Não existe um protótipo do macaense em termos de como vive em sociedade e que profissão exerce. O macaense hoje em dia adaptou-se à nova realidade e, ao contrário dos seus antepassados, tem muito mais posses, tem outra educação, viajou, está em toda a parte e identifica-se plenamente com Macau.
Também é verdade que a nova geração de macaenses está muito achinesada, mas continua ainda a mostrar através da sua atitude que é diferente.
P.M. – Quantos macaenses vivem em Macau e na diáspora?
M.S.F. – Em Macau, poderão rondar os 10, 15 mil, mas não tenho a certeza. Em relação à diáspora, há quem tenha feito a estatística e falasse em 200 ou 300 mil, mas não sei se corresponderá à verdade. Temos de conhecer os critérios destas estatísticas.
P.M. – Em 1999, como reagiram os macaenses à transição?
M.S.F. – Houve várias abordagens. Por um lado, estão aqueles que são acérrimos defensores de Portugal e foi com alguma mágoa que assistiram ao processo. Mas muitos outros não pensavam assim e no fundo encararam com naturalidade esta transição.
Existiu sempre o temor de que Macau e a convivência comunitária pudessem sofrer um golpe que pusesse em causa a própria existência da comunidade. Não houve nenhum macaense, verdade seja dita, que abraçasse a ideia “Bem vinda China”, com todo o respeito pelo país, mas a verdade é que a China não faz parte da nossa cultura.
P.M. – Com o desenvolvimento de Macau os macaenses da diáspora pensam em voltar?
M.S.F. – As pessoas que saíram estão estabelecidas. Macau é uma referência cultural, sentimental, ligada à saudade. No aspeto do dia a dia julgo que não será tão atraente para a maioria. As pessoas vivem num mundo completamente diferente e a Macau que conheceram, se é que conheceram, não tem nada a ver com o que é hoje. Assistimos ao desmantelamento de bairros e dessas referências físicas que fazem funcionar a saudade, as memórias. Voltar a Macau é como voltar para um sítio diferente.
P.M. – A Associação dos Macaenses tem 18 anos. Que papel tem desenvolvido no seio da comunidade?
M.S.F. – Temos um percurso bastante engraçado, apesar da ADM debater-se com problemas financeiros. Mas julgo que, durante estes anos, definimo-nos como uma associação eminentemente cultural. Mantivemos, por exemplo, este ambiente de convívio. Com o tempo chegámos à conclusão que fizemos um bom trabalho neste sentido, pois esta é uma casa onde cabem todos os macaenses, independentemente da sua sensibilidade política. Houve pessoas que não apareciam na ADM porque a associação estava conotada com determinada sensibilidade política. Fizemos ver que isto não era bem assim. A nossa política é não fazer política.
De referir que a ADM também se preocupa com a questão da identidade macaense e, por isso, temos organizado colóquios sobre o tema. Em breve, vamos fazer um colóquio sobre os jovens macaenses, o que é mais complexo porque esta juventude comporta milhentas nuances.
Catarina Domingues
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