Um “campeão da paz” normalmente não ameaça que não vai mostrar misericórdia antes de realizar um ataque que deflagra uma crise humanitária. No entanto, o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, não é o primeiro prémio Nobel da Paz a ir para a guerra.
Oficialmente, as armas em Tigray foram silenciadas: a 28 de novembro, Abiy, que ganhou o Prémio Nobel da Paz em 2019, declarou vitória após três semanas de combates na região norte.
O número exato de mortos não é conhecido, mas o International Crisis Group (ICG) estimou que vários milhares sucumbiram. Os civis fugiram do país numa migração em massa e a ONU alertou sobre uma crise humanitária em grande escala.
A aura de Abiy foi manchada.
“Quaisquer que sejam os erros e acertos do confronto atual, é certo de que a sua reputação como pacificador será seriamente prejudicada”, escreveu o Financial Times num editorial, a 11 de novembro.
“Para o comité do Nobel, há uma lição para tirar daqui. Na dúvida: espera-se.”
Essa paciência também teria sido uma boa ideia em várias outras ocasiões, observam os historiadores.
Dez anos antes de Abiy, Barack Obama ganhou o Prémio Nobel da Paz apenas nove meses após assumir o cargo de presidente dos Estados Unidos – de acordo com a sua autobiografia recente, até ele perguntou: “Para quê?”
Três bombas por hora
Dias antes de receber o prémio em Oslo, Obama decidiu enviar mais 30.000 soldados para o Afeganistão. No seu discurso de aceitação, defendeu o direito de ir à guerra, palavra que proferiu 35 vezes – em comparação com as 29 vezes onde mencionou a palavra paz.
“Dizer que a força às vezes é necessária não é um apelo ao cinismo – é um reconhecimento da história; das imperfeições do homem e dos limites da razão”, disse.
Obama não falhou apenas em pôr fim aos conflitos no Iraque e no Afeganistão durante os seus dois mandatos, mas também intensificou os polémicos ataques de drones.
Em 2016, as forças dos EUA atingiram sete países com mais de 26.000 bombas – ou três bombas por hora – de acordo com o think tank do Conselho de Relações Externas.
O ex-secretário do Comité do Nobel, Geir Lundestad, disse à AFP que as expectativas colocadas em Obama eram “totalmente irrealistas”.
“Era impossível para alguém atender às expectativas”, confessou.
Em 1973, o Prémio da Paz foi concedido ao Secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, e ao líder norte-vietnamita, Le Duc Tho, por negociar um armistício.
A paz não se manteve e Le Duc Tho, que orquestrou a ofensiva final contra o Vietname do Sul dois anos depois, recusou sua metade do prémio.
Kissinger também se ofereceu para devolver a sua metade, em vão, e o seu legado é o de um cínico guiado pelos objetivos da política externa dos EUA, em vez do respeito pelos direitos de cada um.
“Não só continuou a guerra no Vietname, como deu luz verde à Indonésia para a invasão de Timor-Leste”, recorda o historiador norueguês e especialista do Nobel, Asle Sveen, referindo-se à invasão e anexação de 1975-76 da ex-colónia portuguesa.
Kissinger também é conhecido por fortalecer o poder dos ditadores sul-americanos que eram amigos dos EUA.
Nobel e ‘genocídio’
O primeiro-ministro israelita, Menachem Begin, dividiu o Nobel de 1978 com o presidente egípcio Anwar Sadat, devido ao acordo de paz em Camp David assinado naquele ano. Mas as mãos de Begin também estão manchadas de sangue, de acordo com Sveen.
“Begin ordenou, entre outras coisas, a invasão israelita do Líbano em 1982 e o (cerco) de Beirute, e isso indiretamente levou ao massacre de palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila”, lembrou Sveen.
Vários outros laureados com o Prémio da Paz também viram a sua aura enfraquecer com o tempo, sem necessariamente terem sido particularmente beligerantes.
Aung San Suu Kyi destaca-se nessa categoria.
A sua passividade enquanto os militares reprimiam a comunidade muçulmana Rohingya de Mianmar – considerado um genocídio pelos investigadores da ONU – levou a vários apelos para que o seu prémio de 1991 fosse revogado.
Os estatutos do Nobel não permitem isso e o comité do prêmio normalmente evita comentar sobre os desenvolvimentos relativos a um país ou pessoa que ganhou o prémio.
E, no entanto, foi exatamente o que fez, num raro movimento a 16 de novembro, quando disse que estava “profundamente preocupado” com os acontecimentos na Etiópia e apelou pelo fim dos combates – embora ainda defendesse a sua escolha do laureado de 2019.
Este ano, o comité parece ter optado por uma escolha mais segura e consensual: o Programa Mundial de Alimentos, que receberá o seu prémio na quinta-feira.