O juiz administrador do Tribunal de Oecusse impediu hoje os advogados das alegadas vítimas de um ex-padre, que está ali a ser julgado, de entrar no recinto do tribunal para recolher a notificação do adiamento do julgamento
A equipa da JU,S Jurídico Social, que representa 15 das vítimas de alegados abusos sexuais cometidos pelo ex-padre Richard Daschbach, disse à Lusa que foi impedida de entrar por alegadamente não ter cumprido os protocolos de saúde, nomeadamente os 14 dias de quarentena.
Fontes judiciais explicaram à Lusa que a equipa foi impedida de entrar no recinto do tribunal por agentes da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), que tinham sido chamados ao local pelo juiz administrador, Hugo Pui.
“Os advogados ainda estão a cumprir autoquarentena de 14 dias. Hoje cumprem-se 11 dias e por isso o tribunal não aceitou que entrassem, por estarem ainda no período de quarentena”, referiu à Lusa o oficial de justiça.
Olívio Barros, um dos advogados da JU,S Jurídico Social, rejeitou os argumentos do Tribunal, insistindo que os protocolos em vigor na região foram cumpridos e que os advogados foram ao tribunal acompanhados de uma equipa de saúde.
“A presença da JU,S no tribunal deu-se com o acompanhamento dos serviços de saúde responsáveis da RAEOA [Região Administrativa Especial Oecusse Ambeno]”, disse Olívio Barros, em declarações à Lusa.
Barros explicou que o protocolo em vigor em Oecusse exige que quem viaje de Díli cumpra 14 dias de quarentena, mas prevê que, em casos urgentes, como idas ao tribunal, as pessoas possam sair acompanhadas de uma equipa de saúde e cumprindo medidas preventivas.
“Não estamos aqui a questionar a validade ou não das regras da quarentena. Mas o juiz não tem a competência de impedir a entrada de advogados sem qualquer base jurídica”, disse.
“Cumprimos tudo o que RAEOA determinou. Informámos as autoridades da necessidade de ir ao tribunal, eles vieram aqui, fizemos testes, voltaram para dialogar connosco e hoje com despacho de autorização voltaram para nos acompanhar”, frisou.
Arsénio Bano, presidente da Autoridade da Região Administrativa Especial de Oecusse-Ambeno (RAEOA), confirmou à Lusa que o protocolo em vigor obriga quem viaja de Díli, onde há cerca sanitária, a cumprir quarentena de 14 dias à chegada ao enclave.
“Mas o protocolo prevê que, para situações urgentes ou essenciais, como idas ao tribunal, possam sair cumprindo regras sanitárias, depois de pedido oficial e acompanhados da equipa da saúde”, referiu Bano.
“Não nos cabe avaliar a decisão do tribunal, mas parece haver algum problema de comunicação que nada tem a ver com a Autoridade ou com o pessoal da saúde, que meramente autoriza e acompanha as saídas excecionais para trabalhos urgentes ou essenciais”, notou.
O oficial de justiça do Tribunal disse que, antes da chegada dos advogados, a equipa de saúde já tinha sido informada de que não poderiam entrar.
“A equipa de saúde já tinha contactado o tribunal a explicar que iria acompanhar os advogados, mas o Tribunal informou que não podiam”, disse o oficial.
“Quando chegaram, o tribunal não deixou entrar, porque não tinham cumprido os 14 dias de quarentena”, frisou.
A mesma fonte explicou que o tribunal também já não tinha autorizado a ida ao tribunal de dois procuradores titulares, na mesma situação, ainda sem cumprirem a quarentena.
“A situação tem que ser igual para todos. Quando acabarem os 14 dias com resultado negativo podem vir ao tribunal. Mas a notificação [do adiamento do julgamento para 07 de junho] já está preparada para entregar aos advogados do JU’S”, referiu.
Em causa estava a continuação do julgamento de Richard Daschbach, que começou em fevereiro a ser julgado pelos crimes de abuso de menores, pornografia infantil e violência doméstica alegadamente cometidos durante anos no orfanato Topu Honis, em Oecusse.
Daschbach foi expulso da congregação da Sociedade do Verbo Divino (SVD) em Timor-Leste e do sacerdócio pelo Vaticano pelo “cometido e admitido abuso de menores”, com a decisão a basear-se numa detalhada investigação, incluindo a sua confissão oral e escrita.
O julgamento deveria ter sido retomado na segunda-feira, mas foi adiado para 07 de junho pela falta de presença do arguido e da defesa e de parte da equipa dos procuradores.
Em entrevista à Lusa, uma das sócias da JU’S questionou o adiamento, considerando não haver justificação para o arguido não estar presente na audiência marcada.
“Há desafios logísticos para a deslocação a Oecusse, devido à pandemia de covid-19. Mas se o juiz pôde viajar, o Ministério Público também, a equipa da JU,S Jurídico Social, e outros participantes, como se justifica que o arguido e sua equipa não puderam?”, questionou Maria Agnes Bere, frisando que o adiamento tem particular impacto nas vítimas.
“Cada vez que se marca uma audiência para o julgamento, se envia uma notificação às vítimas, e estas se preparam para o julgamento, revivem todo o trauma relacionado com o abuso que sofreram”, explicou.
“As vítimas têm de facto as suas vidas suspensas à espera de que o Estado cumpra o seu dever de julgar crimes. É a terceira vez que a audiência é adiada”, reiterou.