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Denúncias e crimes sem investigação nem punições

Luís Fonseca

A proteção dos direitos humanos em Moçambique tem sido este ano fragilizada, não só pelo conflito de Cabo Delgado, mas pelas suspeitas recorrentes que recaem sobre as Forças de Defesa e Segurança (FDS). A isto junta-se uma incapacidade crónica em proteger vítimas e investigar crimes. Um estudo da Universidade das Nações Unidas avisa os políticos: devem envolver-se com a população rural para resolver insatisfação e travar riscos de insurreição, como no norte.

A violação de direitos humanos em Moçambique agravou-se em 2020. Não só porque os rebeldes que atacam Cabo Delgado, norte do país, intensificaram as ofensivas, mas também porque as próprias Forças de Defesa e Segurança (FDS) são suspeitas de cometer atrocidades arbitrárias contra civis. 

A Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pediu medidas urgentes a meio de novembro. 

“Todas as alegadas violações e abusos cometidos por grupos armados e forças de segurança devem ser investigados de forma completa”, frisou. Mas é um apelo que tem sido feito vezes sem conta, sem resultados ou consequências.

Diversos relatos e vídeos nas redes sociais têm mostrado este ano, com maior gravidade, ações de tortura durante o conflito de Cabo Delgado. 

Uma das imagens do ano é de setembro: a de uma mulher indefesa, em passo acelerado à beira de uma estrada, perseguida e baleada com rajadas de metralhadoras, pelas costas, até morrer, num ato perpetrado e celebrado por homens trajados como militares moçambicanos. 

O Governo disse, sem provas, que o vídeo foi fabricado pelos próprios insurgentes, enquanto inúmeras organizações não-governamentais (ONG) internacionais que analisaram o vídeo ao detalhe responsabilizaram as Forças de Defesa e Segurança (FDS) moçambicanas. 

Não houve nenhuma investigação independente ao caso que fosse tornada pública. E uma comissão parlamentar composta maioritariamente por deputados do partido no poder, Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), concluiu não haver provas de abusos por tropas moçambicanas. 

Este foi só um dos casos mais recentes. Não é preciso recuar muito no calendário para notar que tudo se repete. Em abril, 17 organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, já tinham enviado uma carta ao Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, na qual expressavam “preocupação com o aumento da violência policial contra civis indefesos em Cabo Delgado, cuja autoria é atribuída a membros da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) e do Grupo de Operações Especiais (GOE)”, recorda o Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD), organização não-governamental moçambicana. O Governo nunca se pronunciou.

Um dos mais recentes comentários sobre o tema, e também diferente dos restantes, foi feito pelo representante do secretário-geral das Nações Unidas em Moçambique, Mirko Manzoni. 

Apontou que os casos de violação de direitos humanos em Cabo Delgado resultam por vezes de “frustração e impotência” das tropas moçambicanas. “Não estou de forma alguma a justificar os abusos, mas infelizmente são frequentemente o resultado da frustração e impotência das tropas moçambicanas neste conflito”, disse a 17 de novembro numa entrevista à edição online do jornal suíço Le Temps. 

“Paradoxalmente, essas atrocidades também devem ser vistas como um claro pedido de ajuda. O exército moçambicano não está preparado para responder de forma adequada à violência sem precedentes de grupos ‘jihadistas’”, detalhou.

Insatisfação: Abordada e não reprimida

As queixas sobre o agravamento da violação de direitos humanos em Moçambique são muitas, além de Cabo Delgado. A atuação repressiva e arbitrária das FDS, a falta de segurança pública, barreiras no exercício das liberdades e direitos à informação, à imprensa e de expressão; acesso muito limitado aos serviços sociais básicos como saúde, água, saneamento, educação, habitação condigna e segurança alimentar constituem as principais práticas violadoras dos direitos humanos registadas durante o primeiro semestre de 2020, segundo um relatório do CDD. A Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) também denunciou “exageros e excessos, com sinais claros de violência” na atuação da polícia para garantir o cumprimento das medidas de prevenção do novo coronavírus. “Mais do que isso, há o surgimento de tendências e ondas de ameaças às pessoas que denunciam essa violência”, referiu Vicente Mandlate, conselheiro da OAM.

E a comunicação social não escapa. Nos últimos anos têm-se sucedido graves violações à liberdade de imprensa em Moçambique. “Todos os casos reportados de rapto, ameaças e violência física contra jornalistas nunca tiveram um desfecho. Não há proteção do Estado sobre as vítimas”, destacou a delegação moçambicana do Instituto para a Comunicação Social da África Austral (Misa Moçambique) no início de novembro. No dia 23 de agosto, a redação do Canal de Moçambique ficou completamente destruída num incêndio que a direção do jornal atribui a fogo posto e que mereceu forte repúdio nacional e internacional.

A repressão e a violação de direitos humanos são precisamente o oposto do que recomenda um estudo sobre Moçambique, publicado pela Universidade das Nações Unidas: o documento conclui que os líderes políticos se devem envolver com a população rural para travar riscos de insurreição como em Cabo Delgado e promover o desenvolvimento. Ou seja, “a pobreza existente, a desigualdade e a falta de inclusão irão gerar frustração, que deve ser abordada e não reprimida”. “Não existe um conjunto único de arranjos institucionais que possa garantir que Moçambique evitará um cenário de desenvolvimento do tipo angolano” pelo que “a questão fundamental”, é saber que tipo de inovações institucionais podem contribuir de alguma forma “para a construção de um contrato social para o desenvolvimento nacional e para refrear os piores excessos de procura de rendimentos improdutivos e corrupção”, conclui.

O martírio de mulheres e crianças

Dois grupos populacionais especialmente vulneráveis estão a ser alvo de abusos acrescidos no cenário de guerra e refugiados de Cabo Delgado: mulheres e crianças. A situação está a provocar um aumento de casos de gravidez precoce devido a abusos sexuais de menores, alerta o Alto Comissariado as Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) num sumário sobre o conflito entre rebeldes e Moçambique. “Mulheres e adolescentes foram sequestradas, forçadas a casar-se, violadas e submetidas a outras formas de violência sexual, sublinhadas pelo aumento da gravidez na adolescência nos distritos afetados, bem como por relatos preocupantes de casamentos forçados”. O ACNUR considera que a violência e a crise humanitária deverão persistir e até aumentar, sem sinais de inversão do cenário, lê-se no sumário em que faz um apelo ao reforço do seu próprio financiamento.

Posição do enviado do secretário-geral das Nações Unidas para Moçambique

A violência em Cabo Delgado não se resolve com o envio de uma força internacional para o terreno. A posição foi assumida pelo enviado do secretário-geral das Nações Unidas para Moçambique, em entrevista ao PLATAFORMA, em julho último.

Mirko Manzoni considerou essencial reforçar o Estado moçambicano e para isso pediu “um apoio honesto da comunidade internacional”, sublinhando que o mais importante é criar laços de confiança. A “confiança deve ser construída entre a população e o Estado e não entre a população e uma força internacional”.

Na defesa da sua posição, o diplomata suíço disse que “a segurança de Moçambique tem de ser sustentada, de longo prazo”, ou os problemas nunca serão resolvidos. Mirko Manzoni questionou o que acontecerá se daqui a algum tempo ocorrer um problema deste tipo noutra região como Tete, ou Ressano Garcia. A solução, apontou, não poderá passar “por enviar nova força da comunidade internacional para Tete”, antes por criar condições para que as autoridades moçambicanas possam resolver os seus problemas, com as “forças do país”.

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