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“Gigante afável”, o segundo Camões de Cabo Verde

O mais conhecido e traduzido escritor das ilhas é assassinado momentos antes do início da cerimónia de apresentação daquela que acabaria por ser a derradeira obra. É esta a história de “O fiel defunto”, o novo livro do escritor cabo-verdiano Germano Almeida, lançado em São Vicente, onde vive, uma semana depois de o “grande contador de histórias” ter conquistado o segundo prémio Camões para Cabo Verde.

“O fiel defunto” é, para Germano Almeida, o seu primeiro romance, apesar dos muitos livros que escreveu terem há muito recebido essa classificação. Mas, para o escritor que veste, integralmente sempre de branco, “por gosto”, até chegar a este livro, tinha “apenas” contado histórias.

“Estou a escrever um romance. Sempre disse que sou um contador de histórias e desta vez vou escrever um romance. Acho que é o meu primeiro romance”, anunciava há menos de um ano aquele que é o mais conhecido e traduzido escritor cabo-verdiano.

Nessa altura, o “gigante afável” da literatura crioula [mas que escreve sempre em português], como lhe chamam em referência aos seus 1,95 metros de altura e outro tanto de amabilidade, estaria longe de imaginar que, quase um ano depois, estaria a lançar o tal romance com um “impulso extra” dado pela atribuição do maior prémio literário em língua portuguesa.

O júri da 30.ª edição do Prémio Camões destacou “a universalidade exemplar no que respeita à plasticidade de língua portuguesa” da obra do escritor cabo-verdiano e a distinção foi recebida de forma consensual na comunidade académica e literária de língua portuguesa que não poupou nos elogios. 

O novo livro, o 17º, volta a ter como protagonista um morto como tinha já acontecido em outras obras do escritor, como “O Testamento do Senhor Napumoceno” ou a “Morte do Ouvidor”.

A trama arranca no Mindelo e é impossível não fazer um paralelo com o próprio Germano de Almeida, que garante, no entanto, que esta história “é uma invenção”.

“É a história de um escritor que desistiu de escrever, e que quando mais tarde se decide a retomar a escrita, no dia em que vai publicar o livro, é morto. É morto por um amigo, e o que fica em aberto é saber as razões que levaram a isso”, descreve assim o próprio autor.

Surpreendido, muito feliz e pronto para gastar o prémio

A primeira reação do escritor à escolha como vencedor do Prémio Camões foi de surpresa e felicidade por constatar que é apreciado a ponto de receber o galardão maior da língua portuguesa.

“Estou contente, muito feliz por saber que o que escrevo é apreciado ao ponto de me darem um prémio tão prestigiado como o Camões”, disse Germano Almeida, mal soube da distinção, considerando que há “muitos escritores que merecem o prémio tanto ou mais” do que ele.

Nas muitas entrevistas que deu a seguir ao anúncio, o escritor disse não acreditar que o prémio venha a fazer reconhecer mais o valor do que escreve e, à previsível pergunta sobre o que irá fazer com o valor do prémio, uma resposta à Germano Almeida: “Vou gastá-lo”.

O autor de livros como “Eva”, “O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo” ou “Do Monte Cara vê-se o Mundo” considerou importante a componente financeira do prémio “para um escritor que publica em Cabo Verde e em Portugal, onde os livros são mal vendidos e os escritores, dolorosamente mal pagos”.

O Prémio Camões, o maior prémio da Língua Portuguesa, instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, ascende a 100 mil euros, divididos entre Portugal e o Brasil.

O Prémio Camões foi atribuído pela primeira vez em 1989, ao escritor português Miguel Torga e, na mais recente edição, em 2017, foi entregue ao poeta Manuel Alegre.

Uma voz inconformada

Germano Almeida nasceu na ilha da Boavista em 1945, onde não vai há mais de 20 anos. Atualmente vive em São Vicente, para onde se mudou em 1979, depois de alguns anos a viver em Portugal, onde se licenciou em Direito pela Universidade de Lisboa.

Em 2015, com “Regresso ao paraíso”, Germano Almeida “voltou”, literariamente, à Boavista, depois de, anteriormente já lhe ter dedicado “Ilha Fantástica” (nome de uma das obras emblemáticas do escritor). 

Cabo Verde tem sido assunto de vários dos seus livros, muitos dos quais classificados como romances, embora Germano Almeida se assuma como um “contador de histórias”.

O escritor deu os primeiros passos na literatura na década de 1980, sendo autor de obras como “O dia das calças roladas”, “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, “Dona Pura e os Camaradas de Abril”, “Eva”, “Do monte Cara vê-se o mundo” e “Os dois irmãos”.

Com obras editadas no Brasil, Espanha, França, Itália, Alemanha, Suécia, Holanda, Noruega e Dinamarca, o escritor diz não sentir “nenhuma necessidade de ser lido e conhecido” no estrangeiro. 

“Para mim, Cabo Verde é o centro do mundo. Escrevo para ser entendido pela minha gente e ficaria desiludido se os cabo-verdianos não me entendessem. Fico muito contente de ser lido em Cabo Verde. Se lá fora for lido e traduzido também fico contente, mas não escrevo a pensar nisso, nem é uma preocupação minha”, disse.

Dois dos seus livros, “Testamento do Senhor Napumoceno” e “Os dois irmãos” foram adaptados ao cinema pelo realizador português Francisco Manso. O primeiro estreou-se em 1997 e o segundo este ano.

Além de escritor, Germano Almeida é também advogado, profissão que exerce atualmente, tendo sido procurador da República de Cabo Verde e cofundador da revista Ponto & Vírgula, do jornal Aguaviva e da Ilhéu Editora, que publica a sua obra em Cabo Verde. 

Na década de 1990, fez parte do grupo parlamentar do Movimento para a Democracia (MpD, atualmente no poder em Cabo Verde).

O escritor não deixa de ser uma voz inconformada e crítica dos poderes políticos e da própria sociedade cabo-verdiana, apontando o que entende serem as falhas na governação, quer seja no que diz respeito aos escritores, quer às questões gerais da sociedade.

Recentemente, num encontro literário, exortou os poderes públicos a apoiarem a tradução de obras de autores cabo-verdianos, fazendo notar que todos os seus livros foram traduzidos “com apoio de Portugal e nenhum com o apoio de Cabo Verde”, afirmou.

Em outras ocasiões considerou que a corrupção tomou conta de Cabo Verde, um país pobre que vive como rico e sempre de “mão estendida” à comunidade internacional. “Não temos de estar, eternamente de mão estendida à comunidade internacional à espera que nos ajudem. Cabo Verde tem de ser um Estado, economicamente forte, para estar em condições de defender os seus em ocasiões de crise”, disse.

O escritor deu como exemplo o ano de seca que Cabo Verde está a enfrentar, tendo recebido da comunidade internacional – União Europeia, Estados Unidos, FAO, entre outros -, cerca de 10 milhões de euros. Também recordou que em 2016, a União Europeia aprovou um pacote de sete milhões de euros ao país para responder aos estragos causados pelas chuvas na ilha de Santo Antão. Dois anos antes, o país, que é, extremamente, dependente do exterior, tinha contado com a comunidade internacional para ajudar os deslocados da erupção vulcânica na ilha do Fogo, que desalojou cerca de 1.500 pessoas.

“Não se pode viver em Cabo Verde como se fôssemos um país rico. Não é possível. Cabo Verde tem de ser um Estado previdência. Ainda este ano tivemos o problema da seca. Vá lá que a comunidade internacional, rapidamente, respondeu”, considerou. 

Cristina Fernandes Ferreira -Exclusivo Lusa/Plataforma Macau  01.06.2018

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