Início Cultura Morreu Skapinakis, o artista que fez a “apologia da pintura pura”

Morreu Skapinakis, o artista que fez a “apologia da pintura pura”

Maria Augusta Gonçalves

O artista plástico Nikias Skapinakis, que morreu na quarta-feira, em Lisboa, aos 89 anos, fez da pintura atividade dominante, vendo nela “um processo de conhecimento”, uma procura constante da “essência das coisas”, que estendeu por mais de 60 anos

“Paisagens Ocultas – Apologia da Pintura Pura”, uma das séries mais recentes da sua obra, datada de 2014, sintetiza, no seu próprio nome, a ideia de “vocação, ofício e reflexão”, que a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva destacou no artista.

São porém as palavras do próprio Skapinakis que revelam a sua essência, num processo de conhecimento e indagação, que reconhece na “história da pintura desde o seu remoto passado até ao presente”, e que assume por inteiro, “continuando a pintar”, como escreveu na introdução ao catálogo da mostra antológica “Presente e Passado, 2012-1950”, que o Museu Coleção Berardo, em Lisboa, lhe dedicou em 2012.

É neste texto que cita múltiplas influências que “educaram [o seu] olhar e guiaram [a sua] mão”, da primeira Escola de Paris de Marc Chagall e da contemporaneidade de De Chirico e Morandi, a expressões ancestrais, que remotam a El Greco ou Zurbarán, aos frescos de Pompeia, à pintura italiana de Quattrocento, mas também à literatura, à poesia de Cesário Verde e da Presença, e à realidade em volta, “a pressão claustrofóbica e entediante do ambiente português das décadas de 1950 e 60”, em plena ditadura, a que nunca foi alheio, que combateu e definiu o seu destino.

Os historiadores e curadores de arte, de Henriques da Silva a Pedro Lapa e Bernardo Pinto de Almeida, não hesitam em considerá-lo um dos artistas mais significativos da segunda metade do século XX em Portugal.

Skapinakis foi também um combatente antifascista, militante do Movimento de Unidade Democrática (MUD Juvenil), candidato da Oposição Democrática, nas eleições para a Assembleia Nacional, nas décadas de 1950 e 1960. Foi preso pela PIDE, a polícia política da ditadura, em 1962.

Filho de pai grego e de mãe portuguesa, Nikias Skapinakis nasceu em Lisboa, em 1931. Começou por estudar pintura e desenho, nos cursos da Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), ainda na adolescência, a que se seguiu o curso de Arquitetura de que foi expulso, pelas autoridades do regime, por motivos políticos.

O processo acabou porém por o levar à expressão que mais desejava, a Pintura, e à qual se dedicou de forma regular e quase exclusivamente, durante toda a vida, desde a década de 1940.

Expôs pela primeira vez em 1948, na SNBA, nas mostras coletivas dos jovens artistas da época. Dedicou-se à litografia, à serigrafia e à ilustração. Ilustrou “Quando os Lobos Uivam”, de Aquilino Ribeiro (Livraria Bertrand, 1958), e “Andamento Holandês”, de Vitorino Nemésio (Imprensa Nacional, 1983).

“Partindo de uma figuração lírica, que assimilou dados da modernidade figurativa do início do século, muito cedo a sua pintura revelou uma capacidade interpretativa do quotidiano lisboeta. As cores saturadas do final da década de 1950 antecipam uma viragem que conjuga uma mais plena assimilação da bidimensionalidade modernista com a linguagem popular dos cartazes e posters que invadem a vida de um novo mundo”, lê-se no catálogo da antológica “Presente e Passado”.

Skapinakis revisitou os géneros tradicionais, como a natureza-morta ou a pintura de história, mas reconfigurou tudo, tendendo para abstrações, “que se definem ambíguas e inesperadamente tomadas de um sentido do real”, para linguagens gráficas ou populares, ‘tags’, assimilando sempre múltiplas referências, que nunca deixaram de estruturar o seu trabalho, como se lê naquele catálogo.

É autor do “Retrato dos Críticos” (1971), um dos painéis concebidos para “A Brasileira do Chiado”, em Lisboa, onde reúne José-Augusto França, Fernando Pernes, Francisco Bronze e Rui Mário Gonçalves.

A obra faz parte do ciclo temático “Para o estudo da melancolia em Portugal”, que iniciara em 1967, com “As Três Graças” e que culminaria em 1974, no encontro das escritoras Natália Correia e Fernanda Botelho com a pianista Maria João Pires, uma das pinturas que marcam a arte portuguesa da década de 70.

São também de Skapinakis “As Metamorfoses de Zeus” e os “Enlevos de Miss Europa”, que leva ao longo da década de 1970, os “Retratos de Ausência”, no conjunto de “Pessoas, Ninfas, Bichos, Frutos e Manequins”, que estendeu por mais de 40 anos, desde 1960.

“Com o passar dos anos foram-me atribuindo várias classificações genéricas – expressionista, neorrealista, pop, pós-modernista, clássico, metafísico… Com exceção da asserção neorrealista, que era despropositada, todas as outras designações respeitam, efetivamente, aspetos mais ou menos prolongados do meu trabalho”, escreveu na introdução à mostra “Presente e Passado”.

Os “Quartos Imaginários”, que expôs no Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, em que combina ‘leituras’ de Duchamp, Tàpies, Lucien Freud, Juan Gris, Paul Klee, David Hockney, Max Ernst ou William Blake, retomam uma figuração, nos anos de 2000, que as paisagens dos anos de 1990 pareciam ter decomposto.

Em 2005, para a estação de Arroios, do metro de Lisboa, que se mantém em obras de ampliação, concebeu o painel “Cortina Mirabolante” – do “pintor mirabolante” que também se assumiu -, pensado para a área central, antecedendo o acesso aos painéis originais de Maria Keil.

Em 2009, levou “Desenho a preto e branco e a cores”, ao Centro Cultural de Cascais, abrangendo a obra gráfica de 1958 a 2009.

Um ano depois, concebeu “Paisagem-Bandeira Portuguesa”, sobre a Bandeira Nacional, no âmbito das Comemorações do Centenário da República.

Em 2014, apresentou na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, a série de guaches “Lago de Cobre” e os desenhos “Estudos de Intenção Transcendente”. Ilustrou a revista Colóquio Letras dedicada a Almada Negreiros.

Em 2017, apresentou no Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva, igualmente em Lisboa, a série desenvolvida a partir de 2014, “Paisagens Ocultas – Apologia da Pintura Pura”.

Em setembro do ano passado, a série “Descontinuando”, do pintor, foi mostrada no Teatro da Politécnica, Lisboa, a ‘casa’ dos Artistas Unidos, companhia dirigida por Jorge Silva Melo, que em 2007 dirigiu o documentário “Nikias Skapinakis: O Teatro dos Outros”.

As principais retrospetivas dedicadas a Skapinakis aconteceram em 1985, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com a primeira grande exposição antológica da sua pintura, completada com uma retrospetiva da obra gráfica e guaches na SNBA.

Em 1996, o Museu do Chiado mostrou “Para o Estudo da Melancolia. Retratos de Retratos” e, em 2000, Serralves dedicou-lhe a “Prospectiva 1996-2000”.

No passado mês de julho, a Galeria Fernando Santos, no Porto, inaugurou uma exposição de obras inéditas de Nikias Skapinakis, sobre o tema da paisagem, com o lançamento do livro “Nikias Skapinakis – paisagens [landscapes]”, de Bernardo Pinto de Almeida, numa edição conjunta com a Documenta.

Em 1990, o pintor recebeu o prémio da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte; em 2005, o Grande Prémio Amadeo de Souza Cardoso, da Câmara Municipal de Amarante, e, em 2006, o Prémio do Casino da Póvoa de Varzim. Nesse mesmo ano, foram-lhe atribuídas as insígnias de Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada.

Está representado em perto de uma centena de coleções nacionais e estrangeiras, privadas e institucionais, como as da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação de Serralves, do Museu Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporânea e do Museu Coleção Berardo, da Sociedade Nacional de Belas-Artes e da Caixa Geral de Depósitos/Culturgest, nas coleções de Manuel de Brito, António Prates, Nuno Portas e da galeria Fernando Santos, entre outras.

Para Skapinakis, o processo é sempre o da pintura por si mesma: “Um processo de conhecimento, literalmente, para além das aparências físicas, que os sentidos transmitem”, um processo específico, “que não pode ser repetido por outros campos estéticos, sem que a qualidade essencial de indagação [da pintura] tenda a alterar-se”.

“Trata-se de procurar a essência das coisas; mas talvez as coisas não tenham realmente essência nenhuma e a sua busca seja inútil. É uma dúvida de natureza metafísica que procuro resolver, continuando a pintar”, garantiu o pintor em 2012.

Sobre ele, o poeta José Gomes Ferreira escreveu, em 1981: “Tem a elegância das mãos finas onde não cabem murros”.

“E chegou a estar preso por comunista, nos curros [da PIDE]. Mas não o era. Nem qualquer coisa igual. Vivia o gozo voluptuoso de sonhar, durante dias e dias, com a cicatriz de outra primavera menos pura”, acrescentou.

A Galeria Fernando Santos, que representa o artista e anunciou a morte de Skapinakis, em Lisboa, na noite de quarta-feira, publicou na sua página oficial no Facebook, o poema “Funeral Blues”, de Wystan H. Auden, em homenagem ao artista: “Nada mais vale a pena agora do que resta.”

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!