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“Coloca-se a questão se devemos proibir determinadas obras”

O escritor angolano Kalaf Epalanga questiona até que ponto se deve separar o homem da obra, quando se levanta um conflito moral. O artista voltou a Macau, quase dez anos depois.

A forma como (não) se relacionam as comunidades chinesa e ocidental saltou à vista quando esteve em Macau há quase uma década. Agora, vinha curioso para ver se a cidade e as suas gentes tinham mudado. Notou diferenças. Pelo menos há mais africanos, reparou. Kalaf Epalanga voltou a Macau, desta feita para falar de livros. “Também Os Brancos Sabem Dançar” é o primeiro romance do angolano. Na conversa com o PLATAFORMA, confessou como é difícil gerir a fronteira entre o homem e a obra, na sequência da polémica que surgiu depois de o Festival Literário Rota das Letras ter cancelado o convite a escritores por temer que fossem impedidos de entrar em Macau. 

– Com que expectativas vinha para Macau e para o Rota das Letras? 

Kalaf Epalanga – Quando cá estive, senti que havia duas realidades paralelas – falo da comunidade chinesa e da comunidade ocidental – que se tocavam em determinados pontos da vida social, mas eram como duas avenidas. Senti isso no concerto (dos Buraka Som Sistema, em 2009) e a minha curiosidade era se seria igual. A literatura tem outra relação com as pessoas, é mais próxima. A minha expetativa agora era se teria a oportunidade de ter contacto com outras pessoas. Na escola (Portuguesa) já deu para sentir. Fiquei espantado. Havia alguns negros. Não tinha noção. Por exemplo, vim sozinho no ferry e também vi africanos. Mas aí, ok. A China e África aproximaram-se na última década e por isso não achei espantoso. Mas na escola surpreendeu-me. É sinal de que as pessoas estão a viver aqui.

– Houve três escritores que estiveram ausentes do Rota das Letras porque terá havido um aviso do Gabinete de Ligação, representação da República Popular da China em Macau, de que não era a melhor altura para virem. 

K.E. – Não sabia. Sou angolano. Por isso, estou muito familiarizado com a relação difícil da arte com a sociedade. Muitas vezes não é só a questão política, há também uma questão social. Ainda hoje, e apesar da mudança que houve, somos confrontados (em Angola) com a relação difícil que a cultura tem com as outras esferas. O criador tem uma obrigação para com a obra e para com a sociedade. Por exemplo, sou muito próximo do Agualusa e sei que é persona non grata para o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola – partido no poder) por causa dos comentários que faz sobre José Eduardo dos Santos e Agostinho Neto (antigos presidentes angolanos). A maior parte das pessoas diz-me para me afastar do Agualusa. A primeira questão que coloco é se leram a obra do escritor, porque o Agualusa como pessoa tem um posicionamento político que não se reflete no escritor. Os livros são muito mais universais e abrangentes. Ou seja, são duas leituras: o homem e a obra. Às vezes juntamos as duas por conveniência, mas vivem de forma distinta. Outro exemplo que tem sido interessante observar é a questão de género com os movimentos do Time’s Up e #MeToo. Com o compasso moral que estamos a seguir, coloca-se a questão se devemos proibir o consumo de determinadas obras. Provavelmente, chegará o momento em que não será positivo consumir coisas dos estúdios Miramax, do Weinstein. Pergunto-me se é possível dissociar o homem da obra. Quando vemos um filme do Polanski é impossível não nos lembrarmos da acusação que tem pendente. Mas ao mesmo tempo, quando vejo o Pianista, é uma obra-prima.

– De que forma é que nestes casos em que há uma relação conflituosa com o poder, o artista e a arte se devem posicionar? Acha que têm um papel de maior responsabilidade? 

K.E. – Há 50 anos, as mulheres não votavam. Há 50 anos, provavelmente não estaria aqui por questões raciais. Estamos a evoluir. É inevitável. Como artista, a minha grande tarefa ou desafio é estar sensível ao meu tempo, mas dialogando com o amanhã, que espero que melhore, que seja mais otimista, mais inclusivo. Tenho os meus ideais. E a minha obra reflete isso. Abro-me para esse diálogo: como é que uma obra vai ser entendida daqui a 50 anos. Quando é que vamos ter mulheres presidentes, salários iguais, quando é que o mérito vai ser, de facto, o critério diferenciador, quando é que vai deixar de haver chacina no Brasil, que tipo de China vai existir daqui a 50 anos… Cada vez mais acho que há uma arrogância ocidental muito grande que passa por considerar que os seus modelos democráticos têm de ser aplicados na mesma forma e na mesma medida, sem entender o contexto. Venho de um país africano, e estou consciente que vivemos sob o domínio ocidental. Obviamente que nos adaptámos. Falo uma língua ocidental, comporto-me de acordo com as regras ocidentais…e não falo isto de uma forma negativa. Vivo em Berlim neste momento e tenho pensado muito sobre o Tratado de Berlim que fixou as fronteiras africanas. Muitos dos problemas em África partiram logo daí, porque os países não deviam ter sido construídos dessa forma e somos nós agora quem tem de lidar com isso. 

– Falou da proximidade entre Angola e a China. Sente que a aproximação também se está a refletir ao nível cultural?

K.E. – Ainda não. Sem dúvida que haverá algum efeito, mas ainda é cedo para identificar.

– Chega-lhe o que se vai fazendo deste lado?

K.E. – Pouco. Mas não é culpa dos chineses porque criam bastante. Mas lá está. Vivo sob uma ditadura ocidental. Por isso, quando procuro é sempre algo que tenha a ver com África.

– Falava da arrogância do ocidente. Sente que continua a haver um olhar de superioridade?

K.E. – Absolutamente. Não vou conseguir citar nomes. Mas a arte contemporânea chinesa é muito forte. Vê-se isso quando vais às feiras de arte. Propõem outra coisa, há outra sensibilidade. Eu, com a minha sensibilidade africana ocidental, sou confrontado com aquela maneira de estar que também me influencia. Digo que é difícil dizer em termos práticos e medir as consequências da relação entre a China e Angola, mas a verdade é que o facto de haver essa relação legitima um pouco a arrogância do oprimido. Hoje, olhando para o lugar precário em que o ocidente se colocou. Olhar para onde está a China e a Ásia, e como conseguem dialogar num mercado comum. É interessante ver esse jogo de poder e essa dança em que nos colocámos. Acho interessante ver que a EDP (empresa portuguesa Energias de Portugal) tem capital chinês. Não sei como esta informação vai mudar a minha forma de olhar para as coisas mas sei que, existindo, vai mudar. Imagino como serão aquelas reuniões. Esta mudança no mundo obriga-te a olhar para o outro de maneira diferente.

– Parte da sua geração voltou para Angola e com vontade de mudança. Sente que é uma geração diferente e com outra relação com o país?

K.E. – Estou bastante otimista com a minha geração, mas também com a que vem a seguir. Pela primeira vez, estamos a dar-nos ao luxo de experimentar. Venho do tempo em que ser artista não era profissão. Ainda hoje isso acontece. Mas já nos permitimos experimentar e isso é uma conquista. Hoje um miúdo para existir não precisa de ter aquele emprego na função pública que na geração dos meus pais era fundamental. Permitimo-nos essa instabilidade pessoal. É um luxo que o ocidente já vem articulando há décadas. Esse hedonismo do “vou viajar um ano e pensar na vida”. Em África, isso não é bem possível porque a vida é violenta, exige de ti. Tudo à tua volta exige muito. Estamos a chegar a esse lugar de nos permitirmos a dúvida. 

– Como olha para a nova fase de Angola com a liderança de João Lourenço?

K.E. – Todas as mudanças são positivas, inclusive as que parecem retrógradas como a eleição de Trump nos Estados Unidos. É interessante porque estamos a discutir sobre coisas que não discutíamos. Considero-me liberal, de esquerda, e acho que estávamos a assumir como garantidas e absolutas certas conquistas. Este aparente retrocesso faz-nos pensar que, se calhar, a militância tem de ser constante, e não se pode limitar ao voto. Os valores e os luxos que a democracia te oferece exigem uma participação diária. Tens de estar vigilante todos os dias. Falando de Angola, esta mudança está a permitir isso, falar sobre as coisas e exigir. 

– Mas sente que o país está melhor?

K.E. – Acho que nos estamos a permitir falar, discutir, pensar sobre coisas que há um ano não nos permitíamos. Tem de se ter paciência para ver resultados, mas o estar neste lugar é novo. Tendo a ser mais paciente com a política. As medidas políticas têm duas frentes de entendimento: o curto e o longo prazos. A política atual está muito dependente do curto prazo. Poucos políticos abordam a questão a longo prazo porque isso custará votos. Quando ouço o discurso de um político tento perceber como é que vai afetar a próxima geração. Em relação ao meu presidente, ainda estou à espera da conversa dos 20 anos. Precisamos de nos educar no sentido de aprender a exigir medidas a longo prazo. Não culpo os políticos porque nós só queremos saber de como vai estar o país agora, o meu emprego, como é que vai ser hoje. 

– Tens uma relação forte com Angola, mas optaste por viver fora.

K.E. – Durante muito tempo foi por uma questão prática. Tinha uma banda internacional que ocupou 10 intensos anos da minha vida. Viver em Angola seria muito complicado pela mobilidade e questão económica. O meu bilhete de avião não podia custar o meu cachê. Agora, e pensando no meu filho, sinto a necessidade de lhe dar a experiência africana. Estou a circular. Coloquei como missão visitar todos os países africanos nos próximos cinco anos porque estou à procura desse lugar. Não lhe quero impor Angola. Quero identificar o lugar que reúna as condições. Ainda não o encontrei. 

– É um artista versátil. Como é que surgem tantas áreas de forma bem-sucedida? Como é que faz o uso da palavra e da língua portuguesa, e a prefere em lugar, por exemplo, de um dialeto angolano?

K.E. – O português é a língua oficial do meu país. Não domino nenhuma língua angolana. Não o suficiente para escrever. Faço parte da geração urbana que não fala as línguas nacionais. Os meus sobrinhos, por exemplo, estão a aprender e certamente falarão. Estou a produzir o Toti Samed (artista angolano), e temos muitas conversas sobre cantar nas línguas nacionais, o quimbundo, o umbundo. O que sabemos, fazemos. Quando não sabemos ligamos a alguém para nos ajudar. Na música é mais imediato. Há um verso aqui ou ali. Ter uma canção toda em umbundo é relativamente simples mesmo não dominando a língua, mas escrever um romance…

– Falando em romance, “Também Os Brancos Sabem Dançar” marca o início como escritor de ficção, romance. Depois das crónicas, da música, era um passo natural?

K.E. – A vontade estava lá, simplesmente estava ocupado. Sinto-me escritor. Não me sinto músico. Sei trabalhar com música, sei fazer música, mas preciso de ter compositores na sala para o fazer. Estou confortável com tudo o que envolve a palavra. 

– Diz que tenta fazer os textos o mais acessíveis possível. Mas ao mesmo tempo tem cuidado com a qualidade literária do que escreve. Como é que concilia as duas preocupações?

K.E. – Talvez o meu lado musical tenha também um peso nessa questão. Comentavam muito que nós nos Buraka Som Sistema não escrevíamos muito. É que não há lugar para muita palavra. Cada disciplina que abraço respeita determinados parâmetros. Estou a escrever uma canção desde o Natal e estamos empancados num verso inicial que representa 30 segundos da música. Não encontramos a imagem exata para conseguir cativar o ouvinte em 30 segundos. E estamos aqui. Tendo o dicionário todo. Nos livros também me preocupo em como posso criar a história em que na primeira leitura vais conseguir criar a imagem que quero que tenhas. Quero que cada linha tenha o impacto de uma bofetada. Há livros em que sentes isso: o ofício da escrita. Fazer da escrita acessível não é chamar o leitor de burro, pelo contrário. É respeitar o leitor e não o maçar com dez páginas com o que consigo dizer num parágrafo. 

Catarina Brites Soares  29.03.2018

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