Início » A fundação da República Popular da China vista de Macau

A fundação da República Popular da China vista de Macau

A implantação da República Popular da China a 1 de outubro de 1949 foi bem recebida por parte da comunidade chinesa de Macau. Apesar dos receios das autoridades portuguesas, Mao Zedong aceitou manter o status quo, com a presença em conflito de forças comunistas e nacionalistas a manter-se na cidade até ao incidente ‘1,2,3’ de 1966

Nelson Moura

No dia 1 de outubro de 1949, é fundada a República Popular da China, na sequência da vitória de Mao Zedong sobre o Kuomitang de Chiang Kai-Shek, que se retira para Taiwan. Mao Zedong, o dirigente histórico do Partido Comunista da China, proclama a criação da República em Pequim, na praça de Tiananmen. Mas como reagiram Macau e Portugal ao monumental terramoto político que mudou para sempre o futuro da China?

“Quando a notícia da fundação da República Popular da China chegou a Macau, o Exército Popular de Libertação (EPL) ainda não tinha libertado a província de Guangdong, a província de Hainan e outras áreas circundantes a Macau”, diz ao PLATAFORMA Agnes Lam, diretora do Centro de Estudos de Macau da Universidade de Macau.

Nessa altura, “Macau continuava sob administração portuguesa e mantinha relações diplomáticas com o Partido Nacionalista Kuomintang. Porém, apesar da posição diplomática, houve celebrações não oficiais para marcar a fundação da Nova China em Macau, destacando o apoio local ao Partido Comunista.”

Segundo a investigadora, instituições locais como a Escola Secundária Hou Kong e o Hospital Kiang Wu, que tinham ligações ao Partido Comunista desde a Guerra Sino-Japonesa, foram das primeiras a expressar a sua lealdade ao novo Governo chinês.

Ao saber que a bandeira vermelha de cinco estrelas tinha sido designada como a bandeira nacional, a então diretora da Escola Secundária Hou Kong, Tou Lam, esforçou-se para obter uma, mas sem sucesso. “Devido a restrições administrativas, o distrito de Zhongshan, o mais próximo de Macau, recebeu apenas três bandeiras nacionais. Diante desta escassez, Tou Lam tomou a iniciativa de criar uma bandeira ela mesma, usando uma imagem publicada como referência e costurando-a durante a noite com tecidos vermelhos e amarelos que tinha adquirido”, conta Agnes Lam.

No dia da proclamação, Tou Lam organizou uma cerimónia de içar a bandeira na sua escola, e de manhã cedo, trouxe um rádio para o pátio da escola, preparando-o para o evento. Às 3h da tarde, enquanto o hino nacional tocava da Praça Tiananmen, em Pequim, a bandeira vermelha de cinco estrelas que fizera à mão foi içada pelos professores e alunos, simbolizando a sua participação no nascimento da Nova China.

Bandeira da RPC içada na Escola Secundária Hou Kong, a 1 de outubro de 1949 (Créditos: IAM).

A exibição da bandeira em Macau não passou despercebida pela administração portuguesa, que convocou Tou Lam e a interrogou. “Apesar da pressão, declarou firmemente os seus sentimentos patrióticos e o seu direito, como cidadã chinesa, de celebrar a fundação da nova nação”, aponta Lam.

A 10 de outubro de 1949 foi a vez do Hospital Kiang Wu, que celebrou a ocasião sob a liderança do seu então presidente, O Lon. No auditório do Hospital foram colocados retratos do Dr. Sun Yat-sen e do Presidente Mao Zedong, flanqueados por bandeiras vermelhas de cinco estrelas. A letra do novo hino nacional da RPC e as “Três Grandes Regras de Disciplina” e as “Oito Recomendações” foram exibidas, juntamente com slogans de celebração.

No entanto, segundo o jornalista e escritor João Guedes, em 1949 a maioria das instituições chinesas de Macau estavam ligadas ao Partido Nacionalista Kuomintang, com a fundação da RPC a ser “um choque” para muitos, particularmente para a comunidade portuguesa e o Governo português de Macau, que “não sabia inicialmente quais as intenções” de Mao Zedong para com Macau.

“Não houve grandes manifestações de alegria porque a maioria das pessoas eram pelo Kuomintang. O apoio aos comunistas em Macau era residual”, conta Guedes.

Mao salva o status quo

Meses antes da declaração oficial da inauguração da RPC, em contactos com representantes soviéticos, Mao havia já comentado que em relação a Macau e Hong Kong seria “necessário adotar soluções mais flexíveis ou uma política de transição pacífica, o que exigiria mais tempo” (Créditos: IAM).

Segundo um estudo do investigador de ciência política Moisés Silva Fernandes, os governantes portugueses em Macau e em Portugal temiam o colapso do pequeno enclave com o crescente domínio do PCC no interior e, por conseguinte, o início do fim do domínio português.

O Governo de Mao oficialmente reivindicava uma orientação política revolucionária, anticolonialista e anti-imperialista, que não previa nada de bom para a administração portuguesa do território, em vigor desde o séc. XVI.

No primeiro semestre de 1949 já se tinha verificado um êxodo maciço da comunidade macaense de Xangai, incutindo o receio em Macau e entre os decisores portugueses em Lisboa de que a região teria um destino semelhante. As autoridades portuguesas chegaram a reforçar a Guarnição de Macau com 6.000 militares.

Difícil saber se a razão será suficiente para evitar a violência e encontrar um caminho de respeito pelos direitos e de conciliação de interesses”, dizia António de Oliveira Salazar, figura mais alta da política portuguesa na altura.

Segundo o estudo de Moisés Fernandes, meses antes da declaração oficial da inauguração da RPC, em contactos com representantes soviéticos, Mao havia já comentado que em relação a Macau e Hong Kong seria “necessário adotar soluções mais flexíveis ou uma política de transição pacífica, o que exigiria mais tempo”.

Para Mao, talvez fosse mais vantajoso explorar o status quo para desenvolver as relações da China com o exterior. A nova liderança chinesa estava “disposta a discutir com qualquer governo estrangeiro o estabelecimento de relações diplomáticas com base nos princípios da igualdade, benefício mútuo e respeito mútuo pela integridade territorial e soberania”. Isto se tal governo estivesse disposto a romper relações com os “reacionários chineses”, nomeadamente as forças do Kuomintang.

Com este propósito, a 28 de agosto de 1949, o Departamento de Comércio do PCC criou a Sociedade Comercial Nam Kwong, encarregada oficialmente de promover os laços comerciais entre Macau e a China continental. A empresa, segundo Moisés Fernandes, funcionava como representante oficiosa e “governo paralelo” da República Popular da China em Macau.

Pequim e Mao tiveram o cuidade de descansar a população de Macau […] e que poderiam viver a sua vida normal sem se preocuparem com as profundas transformações que se viviam na China,” aponta João Guedes.

“Isto coincidiu com a vinda para Macau dos restos das forças do Kuomintang que foram sendo desarmadas plea guarnição da cidade à medida que entravam pelo Porto Interior e pelas Portas do Cerco, colocados em campos provisórios antes de seguirem para Taiwan, onde o Governo Nacionalista se refugiou.”

Para persuadir a administração portuguesa de Macau e o Governo de Lisboa sobre o interesse da China em manter o status quo, as autoridades chinesas fizeram uso de vários canais.

Para evitar desentendimentos resultantes das operações de limpeza do Exército de Libertação Popular (ELP) contra o Kuomintang , o Comandante Uong Iok, presidente das administrações político-militares na região, enviou uma mensagem a Carlos Basto, vice-comissário português do Serviço de Alfândega Marítima Chinesa na Ilha da Lapa, e ao Governador de Macau, Albano Oliveira, explicando a política em vigor em relação a Macau e a Portugal.

Diferentes iniciativas por parte das fações comunista e nacionalista passaram anualmente a transformar a Avenida Almeida Ribeiro num campo de batalha visual de ideologias políticas, com demonstrações e instalações começando no final de setembro e continuando ao longo de outubro (Créditos: IAM).

“As autoridades comunistas chinesas respeitarão os direitos de Macau” e “nenhum membro do ELP tentará entrar na colónia em uniforme […] Em segundo lugar, as ligações fluviais e outras entre Macau e a China continuarão como antes”, escreveu Iok.

De acordo com Moisés Fernandes, “durante um período de 16 anos, entre 1949 e 1965, o regime de Mao Zedong fez tudo o que estava ao seu alcance para manter uma política de status quo em relação a Macau. A pequena cidade-estado era importante política, financeira e comercialmente para a China e, por isso, condicionou a sua política em relação ao enclave, mesmo quando foi muito criticada por Moscovo, como aconteceu durante a rutura sino-soviética”, descreve.

A manutenção do estatuto da cidade foi então garantido, com o Chefe do Estado-Maior da Defesa da guarnição portuguesa de Macau, o Capitão Francisco da Costa Gomes, a reduzir para metade as forças enviadas por Lisboa, entre finais de 1949 e 1951.

Demasiado pequena para os dois

Segundo Agnes Lam, a novembro de 1949, houve uma celebração pública significativa em Macau: o erguer de um arco em frente ao Teatro Ping An, na Avenida de Almeida Ribeiro.

Primeiro arco comemorativo da fundação da RPC, na Avenidade de Almeida Ribeiro em 1949 (Créditos: IAM).

Este arco, adornado com grandes retratos de Mao Zedong e Zhu De, marcou a primeira estrutura desse tipo em Macau no âmbito da fundação da República Popular da China. O ato não só simbolizou o apoio local ao novo regime comunista, como também serviu de ponto focal para a expressão do nacionalismo chinês sob o domínio colonial português.

A demonstração causou desconforto entre os apoiantes do Kuomintang em Macau que, em resposta, começaram a afirmar a sua presença de forma mais contundente, construindo os seus próprios arcos em ambas as extremidades da Avenida de Almeida Ribeiro. Estas iniciativas passaram a ser anuais, começando no final de setembro e continuando ao longo de outubro, transformando a a principal avenida da cidade num campo de batalha visual de ideologias políticas.

“No Dia Nacional de 1950, apesar das dificuldades económicas, as forças pró-PCC em Macau continuaram a erguer arcos de celebração”, conta Lam. Segundo a investigadora, esta tradição não só “persistiu”, como com o tempo, “expandiu-se”.

Após a fundação da RPC ,o Governo português continuou apenas a reconhecer o Governo do Kuomintang na Formosa e o 10 de outubro de 1911, data da fundação da República da China.  “Os simpatizantes da China continuaram muito discretamente a sua vida e só em 1951 é que aparecem as primeiras instituições pró-PCC, o jornal Macao Daily, e a Nam Kwong”, diz Guedes.

A existência de duas fações levou a um aumento das tensões e a confrontos ocasionais nas ruas. A comoção política e social interna da China durante o período da Revolução Cultural acabaria por tirar Macau desse marasmo, levando aos incidentes do ‘1,2,3’ em 1966. Um longo embargo imposto pela administração portuguesa à construção de um escola na Taipa levou a motins e confrontos que levariam cerca de dois meses a ser sanados.

Um dos efeitos do ‘1,2,3’ foi a perda quase total pelas autoridades portuguesas do controlo sobre a comunidade chinesa, e a aceitação em proibir qualquer organização na cidade afeta ao Kuomintang e ao Governo de Chiang Kai-shek, em Taiwan.

Incidentes do 1,2,3 em Macau, a dezembro de 1966 (Créditos: IAM).

Segundo o antigo historiador e comentador, Camões Tam, entre 1949 e 1966, a presença do Kuomintang em Macau “ainda era consideravelmente forte”, mas depois do ‘1,2,3’ o Partido Nacionalista foi efetivamente expulso da cidade, com o PCC a descrever Macau como uma “zona semi-libertada”.

“Desde então, o PCC passou a governar efetivamente a população chinesa de Macau sob o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’”, sublinha o historiador. E assim, o 10 de outubro deixou de se celebrar oficialmente, passando a comemorar-se a fundação da RPC, a 1 de outubro.

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!