Sentado em um café no porto ucraniano de Odessa, Kirim, um contrabandista local, dá uma tragada no cigarro e explica como a guerra provocou o rompimento dos laços entre as máfias da Rússia e da Ucrânia.
O tráfico de drogas, armas e seres humanos na fronteira entre Rússia e Ucrânia nasceu das ruínas da União Soviética, mas desde o início da invasão russa, em fevereiro de 2022, foi interrompido.
“A grande maioria dos criminosos ucranianos ficou do lado da Ucrânia, mas também há aqueles que continuam colaborando com a Rússia”, disse Kirim, 59 anos.
Ao atacar a Ucrânia, as tropas russas cortaram uma rota de contrabando que se estendia por centenas de quilômetros, da Rússia à Europa.
O crime organizado nos dois países, que compartilham laços históricos, linguísticos e culturais, prosperou na turbulenta década de 1990, graças à corrupção.
“Era um dos ecossistemas criminosos mais unidos da Europa. Entre os dois formavam um único grupo”, afirmou à AFP Tuesday Reitano, vice-diretora da ONG ‘Global Initiative Against Transnational Organized Crime’.
A guerra, no entanto, provocou a criação de várias barreiras físicas ao tráfico, incluindo os combates na frente de batalha e os postos de controle. E ainda é necessário considerar o grande sofrimento provocado pela invasão.
Criminosos “patriotas”
Entre os mafiosos ucranianos cresceu o sentimento de “nós contra eles”, ao ponto que “até os criminosos se consideram patriotas”, comenta Reitano.
Kirim se apresenta como um patriota e garante que interrompeu todos os contatos de contrabando com os russos. Ele explica que alguns criminosos financiam, ao mesmo tempo, os esforços bélicos da Ucrânia e obras de caridade.
Alguns, afirma, participam dos combates. Em alguns casos, os criminosos tentam usar a guerra para melhorar sua imagem ou conseguir um tratamento benevolente das autoridades em troca de apoio, acrescenta.
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Outro integrante da máfia de Odessa, identificado apenas como Alexander, também se define como um patriota e se recusa a trabalhar para os russos.
O cobrador de dívidas de 40 anos destaca, no entanto, que o código de conduta dos criminosos proíbe qualquer cooperação com o Estado ucraniano, que ele descreve como profundamente corrupto.
“Não quero lutar por eles, mas vou lutar pela minha cidade”, explica, enquanto toma o segundo copo de cerveja da manhã.
Os dois entrevistados contam que as forças de segurança ucranianas ordenaram que a máfia interrompesse as atividades quando Moscou invadiu o país. Além disso, pediram que seus integrantes divulgassem qualquer informação que tivessem sobre os russos.
As forças de segurança do país afirmaram à AFP que “neutralizaram” na primavera (hemisfério norte, outono no Brasil) de 2022 um influente grupo criminosos de Odessa, que cooperava com Moscou e que “aterrorizava e intimidava os moradores”.
“Nenhuma divisão”
Por mais que se declarem patriotas, os criminosos ucranianos às vezes também se aproveitam do terreno deixado pelos russos.
Quando a guerra começou, membros de grupos do crime organizado internacional abandonaram a Rússia e a Ucrânia e seguiram para regiões menos turbulentas, como a Ásia Central e os Estados do Golfo.
“Sabemos que ainda há muita cooperação entre as máfias russa e a ucraniana fora da Ucrânia”, destaca Tuesday Reitano.
De acordo com a agência da União Europeia para a cooperação policial, a Europol, é muito provável que os criminosos dos dois países continuem trabalhando em parceria.
As máfias utilizam mais de uma rota de contrabando e cortar uma delas não impede a continuidade do tráfico. Os grupos se adaptam e diversificam as operações.
“Eles estão atentos aos lucros e, apesar da guerra, continuam com suas atividades criminosas, em busca de melhores oportunidades”, explica Catherine De Bolle, diretora da Europol.
“Até o momento, não vemos nenhuma divisão entre as máfias russa e ucraniana”, completa.
Em Odessa, com os russos ou sem eles, e apesar dos obstáculos criados pela guerra, os criminosos não interrompem as atividades.
“Apesar de tudo, continuamos. Odessa ainda é Odessa”, resume Kirim.