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A fachada da fantochada

João MeloJoão Melo*

No domingo de 20 de Novembro inicia-se o Campeonato Mundial de Futebol no Qatar.

Desde a escolha do espaço e do tempo em que se realiza, até às alegadas violações de direitos humanos, legislação restritiva quanto a liberdades individuais e mortos durante a construção dos estádios, há muito que a organização do evento se encontra envolta em polémica. De facto a polémica só deve existir no ocidente, a geografia cultural que fornece a esmagadora maioria dos actores e espectadores deste show, porque para os organizadores está tudo bem, aparte a surpresa pelas críticas vindas desse mesmo ocidente. Não vou condenar normas culturais ou religiosas por serem diferentes das minhas, já passei temporadas na zona, inclusivamente assisti pela TV a vários jogos do último Mundial de 2018 em Sports Cafes no Dubai; o meu lema para situações análogas é “em Roma sê romano” porém entendo que o típico fã de futebol europeu ou da América Latina se sinta desajustado neste ambiente, além de que nunca me faria acompanhar para esses países de mulheres que amo, amigas ou da minha família, não quero, ponto. Vejamos algumas normas a serem respeitadas. Em primeiro lugar, fora as vacinas e testes de covid será necessário possuir um seguro de saúde válido no Qatar; o destino de sonho não tolera o pesadelo do desleixo com a saúde associado à pobreza, e bem sabemos como a gentalha do futebol tem queda para estes “vícios”. Bandos de portugueses a comer “sandes de courato” em roulottes é… irreal; nem dinheiro para lá ir, muito menos se come pele de porco, que nojo! Depois a roupa. Aquelas figuras masculinas, geralmente do centro/norte da Europa a emborcar cerveja em calções e tronco nu podem tirar o cavalinho do sol (já que chuva não há lá): nem calções, nem tronco nu, nem bebidas alcoólicas na rua, o que não é mau de todo… Quanto à vestimenta das mulheres nem vou abordar, imaginem. Pior na escala de ofensa são as relações entre pessoas do mesmo sexo, ilegais e puníveis com até sete anos de prisão. Ahã, prisão, aquele lugar famoso por desestimular relações entre indivíduos do mesmo sexo. É crime fotografar ou filmar pessoas; beijos, abraços e apertos de mão entre pessoas do sexo oposto são considerados actos obscenos, mas se forem do mesmo sexo… agora perdi-me. O futebol agrega grupos de pessoas que a reboque do fenómeno desportivo realizam catarses colectivas, e após o cocktail de regras descrito estão a ver o comum adepto ocidental originário de economias em crise a organizar-se com os amigos para até uma semana antes do Natal viajarem para um onírico e dispendioso destino de verão em festa onde não podem gozar a festa ou o verão à sua maneira? Se sim talvez tenham um choque. É claro que muitos adeptos dos países em prova viajarão para o Qatar, só de Portugal esperam-se 2500, um número sujeito a actualizações, portanto calculo quantos irão de países grandes e/ou ricos.

No teatro grego da antiguidade quer as peças fossem tragédias, sátiras ou comédias, eram sempre representadas por homens, mesmo quando havia personagens femininas. Uma das características da actuação era o uso de máscaras conforme o argumento representado. Este Mundial no Qatar é um teatro grego do século XXI. Os actores são todos homens, na assistência até pode haver mulheres mas já vimos que não existe especial encorajamento. De quatro em quatro anos a FIFA aluga a exploração do franchising a quem dá mais, e igual ao que sucedeu no último Mundial na Rússia ele serve para legitimar agendas particulares. Não estou a criticar a escolha do local por isso, todos os eleitos ao longo dos anos se serviram do evento para se promoverem, estou a dizer que ao ser vendida a concessão ao Qatar, um país sem condições para realizar o evento na época do ano em que sempre se realizou (no Verão do Golfo Pérsico estrelam-se ovos no alcatrão), sem tradição no futebol, sem público para o apreciar, com tanta restrição ao folclore e modos dos tradicionais adeptos, significa que desta vez o teatro é única e exclusivamente uma fachada para uma fantochada. No fundo realiza-se lá porque uns sheiks quiseram montar o seu teatrinho para gozo pessoal, porque sim, porque podem pagar e pagaram-no a peso de ouro, logo compraram o direito a ver ao vivo as maiores vedetas do planeta do futebol ali a suarem só para eles. Se terá espectadores ao vivo é secundário, o que não deixa de ser curioso visto enquadrar-se numa lógica pós-pandémica, e faz-me equacionar uma nova perspectiva, quiçá seja um ensaio para outros espectáculos que lidam igualmente com emoções. A nível planetário os espectadores terão a habitual transmissão via TV, para eles a realidade é o que lhes for mostrado, virtual ou não. O Mundial podia ser totalmente realizado em estúdio e na verdade até é: por exemplo, o estádio onde Portugal fará o primeiro jogo, como outros no meio do nada, foi construído exclusivamente para o evento e será desmantelado no fim, tal e qual um gigantesco estúdio de produção. Devido à elevada temperatura exterior todos os estádios possuem um sistema de ar condicionado (alegadamente auto-sustentável), igual a um estúdio… Em boa verdade alimento a expectativa de assistir a um novo conceito de entretenimento (estúdio-estádio), e que tecnicamente este Mundial seja o mais vistoso de sempre, quase um video-jogo em 10K mas com personagens reais. Deve ser esse o propósito final, tornar a realidade concreta numa realidade virtual, e como apenas estes sheiks poderiam pagar a experiência porém à conta de contrapartidas obtusas para o típico adepto ocidental, olha, que se dane o público ao vivo, para esse quesito será suficiente o volume de corajosos que lá se deslocarão; depois contratam-se meia-dúzia de ordeiros imigrantes do Bangladesh, Sri Lanka, indianos, paquistaneses, nepaleses, etc, vestem-se com as cores das equipas em disputa e faz-se copy-paste até preencher o estádio. O som pode ter origem em prévias gravações de estádios com “verdadeiros adeptos”, o que nem é novidade já foi testado durante a pandemia. Para os donos da casa até é melhor assim, menos distúrbios. Se o cenário, perfeito no papel, falhar no terreno por falta de autenticidade, sugiro pagar um extra aos adeptos imigrantes para andarem à porrada (só vale partir as hastes das bandeiras, nada de cadeiras a voar), e aí sim, teríamos a síntese perfeita do espírito do futebol; é este o caminho se se pretender experimentar o nível acima de realidade simulada que compõe a moldura do já extraordinário palco de vedetas. Claro, os actores nas bancadas teriam de ter sempre presente que é tudo encenado, então entraria a polícia de choque meiguinha, civilizada, mostrando ao mundo que os direitos humanos não são uma treta; “in your face, westerns!” Esta acção da polícia contra actores serviria também para dar uma pequena lavadela numa das faces do Mundial que se preveem mais sujas: o confronto dos forasteiros ocidentais com as autoridades locais. E podem crer que os meios de comunicação já salivam por antecipação, esperando um menu de situações conflituosas, o que significa polémica, indignação… audiências! Não me admiraria que figuras ou grupos (sobretudo de países como Holanda ou Dinamarca, pequenos e poderosos) boicotassem isto ou aquilo, até mesmo a participação, defendendo princípios seus ou solidariedade com outrém.

Em suma, esta gigantesca encenação é uma parábola do antigo teatro grego, tudo e todos usam máscara, contudo tal como sucede no mundo real as máscaras hoje resumem-se a dois estados de espírito: comédia ou drama. Quem sabe se naquelas cómicas claques cujas imagens nos têm chegado não haverá um ou outro imigrante no estádio a gritar e a pular festivamente sobre o cadáver de algum companheiro soterrado nas fundações? Se ainda houver planeta acredito que o Mundial de Futebol realizado num país de cultura semelhante ao Qatar em 2072 será o cumular das experiências que hoje se realizam: as vedetas do futebol mundial estarão todas “chipadas”, enquanto em suites luxuosas no estádio os sheiks serão os verdadeiros jogadores; jogarão entre si através de implantes, hologramas, o que quer que substitua os actuais joysticks, e os players em campo serão meros robots orgânicos executando as jogadas via controlo remoto. Espera, não vivemos em 2022 algo parecido? A realidade não será uma fachada de um teatro montado não sei por quem e onde nós, os actores, somos meros fantoches?

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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