Já em época de crise no sector assinei um contrato de edição discográfica que garantia à editora os direitos pelas vendas dos meus trabalhos através de todos os meios inventados ou a inventar (uma terminologia comum no meio), porém com o delicioso complemento de além da Terra a sua jurisdição se estender “ao sistema solar e espaço circundante”.
Por um lado fiquei triste porque como típico português fintador do sistema estava a pensar em ganhar uns cobres vendendo os meus temas à socapa em Júpiter, e percebi que nem na galáxia de Andrómeda o poderia fazer já que deve estar incluída no tal “espaço circundante”; por outro lado fiquei contente, era sinal de muita ambição e ao mesmo tempo de sintonia mental: uma editora que se preocupa com as estrelas é cá das minhas…
Esta semana no supermercado comprei um pão para a minha mãe e a senhora da caixa perguntou-me se queria factura com contribuinte; ri-me e ela disse-me que ficaria surpreso com alguns casos, contando-me o de uma senhora que quis factura com contribuinte por “um bróculo”.
Naturalmente a escassez de recursos, o medo de faltarem, o excessivo foco no individualismo e a revolta por nos sentirmos roubados podem levar a extremos, mas eles contribuem também para acumularmos uma energia muito perigosa, a raiva. A raiva é um ácido que corrói o espírito, vaza para fora do contentor e explode devido a qualquer faísca, quer ela se produza por uma razão importante ou fútil.
Que se saiba somos a única espécie capaz de se aniquilar a si própria. Kardashev, um astrofísico soviético estabeleceu nos anos 60 uma escala (entretanto actualizada) para medir o grau de desenvolvimento tecnológico de uma civilização; baseia-se na quantidade de energia colectada, usada e processada. Nunca na Terra se ultrapassou o primeiro nível (zero) definido pela habilidade de aproveitar a energia do planeta mas não todo o seu potencial, além da inaptidão para gerir eficientemente os recursos. No nível seguinte uma civilização utiliza toda a energia em potência de um planeta, vulcões, terramotos, etc, controla a sua temperatura e clima. Daí para cima há mais cinco níveis que vão da capacidade de manipular a energia de uma estrela, de várias estrelas, de buracos negros, supernovas, galáxias, produzir alterações no espaço-tempo, controlar a entropia, fazer uso da energia de vários universos, até ao último nível que comportará civilizações aptas a viver fora do espaço e do tempo, com o poder de criar ou destruir universos; uma civilização destas é quase inimaginável, aproxima-se do conceito de divindade. A partir do grau raso onde nos encontramos acho cada vez mais difícil uma civilização embarcar na via predatória ou destrutiva. No caso de civilizações que estejam para lá da dimensão do espaço-tempo e que têm capacidade para criar universos, o conceito de destruição nem se aplica. Podem ter criado o nosso mundo, logo desfazê-lo é tão irrelevante e legítimo como nós matarmos uma cultura de bactérias em laboratório ou desligarmos um robot.
Uma civilização de nível zero munida de capacidade nuclear e os depósitos individuais atestados de raiva é uma civilização à beira da auto-aniquilação. Há três anos pressenti que íamos em direcção a esse desfecho, agora compreendo porquê. Estávamos suficientemente avisados contudo o excesso de avisos às vezes produz o efeito contrário, como conduzir um automóvel seguro numa estrada cheia de sinais de perigo, onde a certa altura deixamos de lhes prestar atenção, mais à frente despistamo-nos numa curva e morremos; o sinal estava lá mas quem lhe ligaria após termos passado por tantos sem problemas? Já que falei na raiva poderia acrescentar o orgulho, a inveja e a ganância como factores que contribuem para nos encontrarmos à beira do abismo, e se quiserem juntem-lhe outros pecados capitais.
Entretanto as actuais circunstâncias favorecem o crédito a especialistas que defendem que “os nossos filhos devem estar preparados para combater pela Europa”, assim como o descrédito por visões diferentes. Muito bem, vamos lá então combater pela gula, preguiça e luxúria da Europa, e pronto, não saímos disto há dezenas de séculos, um ciclo de guerras sem fim até à que porá fim ao ciclo. Não sou tolinho, sei que soa a utopia mas a guerra não se previne com armamento, previne-se com educação, o que pelos vistos não tem sido conveniente. Embora importante a educação não se restringe à vertente académica, é muito mais que isso. A educação no verdadeiro sentido do termo significa um processo que visa o pleno desenvolvimento intelectual, físico e moral de um indivíduo. Os europeus gostam de exibir o seu alto nível de educação, temos cursos superiores, respeitamos os direitos humanos, somos maioritariamente cristãos, mas na prática poucos seguem o espírito cristão, inúmeras chacinas deram-se e dão-se neste continente, os recursos intelectuais não estão ao serviço da civilização, sendo por exemplo incapazes de impedir sucessivas guerras. A falta de educação juntamente com a raiva, a ganância, o orgulho e a inveja tanto são os ingredientes que levaram Putin a invadir a Ucrânia como são os mesmos ingredientes que levaram há dois anos funcionários do SEF a matarem um cidadão ucraniano nas instalações do aeroporto. Suponho que nunca fariam isso a um sueco mas temos de compreender, nessa altura o cidadão ucraniano não era tão branco e europeu como agora… Quando não há um inimigo concreto a raiva vira-nos uns contra os outros, ainda este fim-de-semana se verificaram violentos confrontos à porta de uma discoteca em Lisboa. Andamos sedentos de conflito, logo não podemos esperar que o colectivo resulte numa soma diferente das contribuições individuais.
Estando cheios de raiva, orgulho, inveja, ganância, e não mudando a maneira como encaramos e distribuímos os recursos, será normal um destes dias surgirem queixas de que “os ucranianos chegam cá e têm casa, escola, emprego, enquanto os portugueses blá blá blá”… É do conhecimento empírico: aquilo que está sempre aberto fecha-se com inusitada tenacidade se perceber que pretendíamos que estivesse aberto. Os recursos são vitais para o funcionamento da civilização e para sermos melhores humanos, é um facto, por isso nesta guerra os russos não avançaram mais alegadamente por dificuldades logísticas, e o seu foco em relação aos ucranianos é cortar-lhes linhas de abastecimento, isolá-los. Todavia sem uma sólida formação moral os recursos são frequentemente uma desculpa exterior para a falta de valores interiores.
Há sete níveis de civilização, sete pecados capitais. Nunca passaremos do nível zero enquanto não dominarmos os tais pecados. A questão mais importante agora não é ganhar a guerra e sim ganhar a paz; infelizmente só se pensa nisso como forma de projectar as futuras relações de poder, não para reformular o funcionamento humano. Julgo que a dinâmica do mundo nos conduz para um conflito global, algo que provavelmente já todos sentem, que inclusivamente consideram inevitável, quiçá até desejável, uma vez que ninguém está disposto a mudá-la (eu não mudo se os outros também não); portanto só nos redimiremos através de um doloroso reset total que permita começar de novo. Não tinha que ser assim, mas assim será graças ao medo de perder. Felizmente acredito que daqui a 40 anos os que restarem terão compreendido pelo sofrimento e estarão preparados para subir de nível.
*Músico e embaixador do PLATAFORMA