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Chumbo à cadeira de comunicação

João MeloJoão Melo*

Um destes domingos de manhã fui ao cabeleireiro de homens cortar o cabelo, o espaço estava vazio, uma televisão dominava o ambiente. Ouvi o credo católico ao ritmo da tesoura e o programa seguinte de gastronomia ao som da máquina de aparar, cujo zumbido monotónico amplificado pela proximidade do pavilhão auditivo me estimula a cantar, completando o acorde da entrada de Also sprach Zarathustra de Strauss. Talvez saturado por estar tanto tempo amarrado a uma cadeira tipo “Laranja Mecânica”, suportando uma emissão que não escolhi, cantei, aliás berrei o tal acorde. A Augusta cabeleireira, a única que me apara os golpes (tenho remoinhos tramados que só ela sabe disfarçar) mas não entende nada do que falo, razão porque já nem faço conversa, assustou-se, de facto reparei estar idêntico ao Jack Nicholson em Shining: “- atão João, ’tás-te a passar? És mêmo maluco, pá.” Continuei mais comedido a cantar o acorde em cima do zumbido abafando o som da televisão, um alívio, restando a imagem do pernil assado a acoplar graciosamente no joelho de porco, como em “2001 Odisseia no Espaço”. 

Vá-se lá saber porquê, a imobilidade forçada numa cadeira é marcante para mim de tal forma que recordo vários episódios traumáticos. Teria sido executado noutra vida numa cadeira eléctrica ou serão resquícios do filme de terror da minha infância protagonizado pelo Dr Spínola? De antemão o nome sugere um general de uma ditadura sul-americana ou um vilão de BD e anos mais tarde veio-se a saber que nem sequer dentista era. No cabeleireiro ainda dá para expressar uma opinião ou gozar o prato, numa cadeira destas meramente se abre o bico para gemer. Possuo algumas características anatómicas peculiares e já o Aires, um amigo estomatologista natural de Coimbra, igual ao dono do café do Bruno Aleixo, dissera em tempos que se me arrancasse um canino pretendia emoldurá-lo pois nunca tinha visto um tão grande. Bom, apesar da idade a minha cabeleira continua um paradoxo, unicamente génios a entendem e creiam que aprendi a distingui-los; se houvesse um curso de cabeleireiro em Harvard o corte do meu cabelo seria o exercício final, o que apura a excelência. Depois sinto que se estabelece uma estranha relação de intimidade física. Na juventude cheguei a partilhar a refeição do barbeiro ao depreender que o súbito odor quente a pescada cozida com ovo no ar seria decorrência de um arroto. Sendo impossível fugir da cadeira vi-me obrigado a absorver gás digestivo alheio. A inevitabilidade da privança leva-me a problemas morais quando preciso trair um cabeleireiro; sim, sinto como traição ainda que vá apenas uma vez e deteste o resultado, evito passar na sua rua não vá o traído ver-me e perceber que “fui a outro”. Quer gostemos ou não é a nossa essência, somos mamíferos ciumentos. Mal chego a casa o gato também vem a correr fazer a revista, investigando se as minhas pernas cheiram a traição. Desde que descobri a Augusta em Portugal não preciso de a trair porém criou-se outro problema: e se ela morre? 

É embaraçoso admitir mas vivendo temporadas fora do país planeio o corte de cabelo antecipadamente. Para destinos longínquos a ansiedade inicia-se logo na cadeira do avião: se ir num lugar do corredor é claustrofóbico quanto baste, imaginem ter que passar oito ou mais horas nos da janela ou do meio, obstruído por estranhos. Todos aturamos putos aos pontapés à cadeira que não param mesmo que chamemos a atenção dos pais, todavia desafio alguém a declarar que já viajou com a cabeça de um indiano no colo. O que rezei para não ver insectos a escapar do turbante… 

Não frequentando médicos ou ginásios (felizmente), prostitutas (infelizmente?), nem tendo assistido a mais que um quarto de hora do Eyes wide shut, o embaraço de partilhar intimidade física desprovido de outro tipo de envolvimento restringe-se às viagens, restaurantes, teatro, cinema e cabeleireiro. Não dispondo de dinheiro para primeira classe ou camarotes confesso que as regras de higiene associadas à pandemia me vieram dar um certo jeito.

No oriente o corte de cabelo foi um trauma até descobrir o tipo que corta bem. É que à falta de know how para cabelo remoinhado e assimétrico há que acrescentar a inexistência de uma plataforma linguística comum. Um dia sentei-me numa cadeira de um jovem barbeiro em Macau na expectativa de que soubesse inglês; naturalmente revelou-se uma esperança vã, uma experiência constrangedora malgrado ele jorrar simpatia. O rapaz aparentava felicidade por ter um cliente, ademais estrangeiro, aplicando-se em pormenores irritantes que não adiantam nada, a merda está feita. Sou adulto, sei que é impossível voltar atrás, ao contrário da minha filhota que quando lhe cortaram o cabelo pela primeira vez ria lavada em lágrimas vendo madeixas a cair, e na altura em que se olhou ao espelho não achou tanta piada, apanhou molhos de cabelo do chão e disse “papá, põe… (novamente na cabeça)”. Foram duas penosas horas na cadeira do chinês, tão somente queria sair dali a qualquer preço mas ele insistia em notar um cabelo fora do sítio aqui, dar um toque acolá, enquanto o meu sorriso ocultava desespero “man, esquece, isso não tem conserto. Liberta-me por favor!” Fiquei esgotado, ser hipócrita é muito cansativo. Devido a termos comunicado exclusivamente através da linguagem dos surdos-mudos não afianço a fiabilidade do julgamento contudo acho que ele se despediu a pensar “este está no papo”. De que modo poderia não pensar após tanto esmero? Eu saíra de ar satisfeito, inclusivamente dei-lhe gorjeta… Claro que nunca mais passei à sua porta. 

De navalha em punho a Augusta aplicava as raspadas finais no momento em que a televisão mudara a programação para um directo sobre a final da Taça de Portugal em futebol. De repente explode: “oh pá, sempre a falar da Taça, é isto a toda a hora, fooogo!” Surpreendido por ter gramado a contragosto uma emissão que pelos vistos também não lhe estaria a agradar, e conhecendo o seu temperamento exaltado, ao género de “Nascido para matar”, não fosse eu ser degolado na cadeira mencionei de mansinho ”ó Augusta, você tem sempre a opção de mudar de canal…” Respondeu ríspida: “-mudar? Não! Podiam fazer isto noutro canal, eu só vejo a TVI.” Ok, e eu é que sou o Dr. Strangelove, o maluco… Ninguém corta o cabelo como ela, Deus a mantenha, nunca mude, não morra, nem me mate. À medida que me dirigia para o carro ainda meio atarantado, veio-me à memória uma frase do Vitorino Nemésio na abertura do seu programa de televisão “Se bem me lembro”: dizer o quê, a quem e como? O verão vai longo e a comunicação difícil. 

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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