“Tudo o que é bonito também está contaminado, e tudo o que é horrível também tem o seu lado bom. Sempre há um pouco de cinzento em tudo.” – Brunhilde Pomsel, secretária de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi, quando aos 105 anos foi filmada para o documentário “Uma vida alemã”.
O sim não é um passaporte para o vale tudo, é uma prova de confiança que implica responsabilidade. Enquanto filho tenho a impressão de quase nunca ter ouvido um sim, e enquanto pai raramente ter transmitido um não. Posso estar errado acerca desta lógica mas após adicioná-la ao carácter e circunstâncias constato que a minha prole resultou em seres humanos melhores que eu. O sim dá liberdade e consequente responsabilidade. Um animal doméstico tem de ser educado na base do não e recompensas pois nunca terá juízo crítico. O não promove a ordem; se ela é boa já é outra questão. Uma criança não pode ter absoluta liberdade porque está despreparada para os complexos desafios da vida; ainda assim à medida que cresce deve-se permitir-lhe assumir liberdades/responsabilidades inerentes ao seu estágio evolutivo. O sim é um acto de amor. Se houver um criador a sua obra foi concebida no espírito do sim. Quem ama não espera que o objecto do seu amor o mimetize, antes aspira a que ele descubra o seu caminho sem constrangimentos. Por este motivo não acredito em religiões que na sua orgânica impliquem adorar o criador; a existir adoração ela só terá valor se for espontânea, fruto da consciência pessoal adquirida. Um sim que se dá sem ter em conta o possível erro do outro não é um verdadeiro sim, tal como não será um acto de amor quem dá aguardando algo em troca, isso é uma negociação: eu dou-te o que tu queres, tu dás-me o que eu quero. O que achamos melhor para os outros baseia-se na nossa experiência pessoal porém ela pode não ser a mais adequada para se aplicar fora do nosso contexto. Amar implica desapegarmo-nos do ego, tolerar a diferença, permitir que os outros sejam eles próprios. Quando genuinamente aplicado este princípio o resultado costuma ser fantástico: amor, respeito e gratidão são recebidos na exacta medida que são dados, as interacções tornam-se mais leves e verdadeiras.
Há uns anos houve um programa na SIC chamado “Na casa do Toy”, um reality-show que mostrava o seu dia-a-dia. Um dia o artista fez um convite a mim e dois amigos meus para aparecer, jantarmos em Setúbal e assistirmos a um jogo de futebol entre o seu Vitória e o nosso Sporting; aceitámos, ‘bora lá para a palhaçada. Chegados a casa dele a produção pediu para nos sentarmos num sofá e esperarmos um pouco. Na sala estava um puto, um sobrinho do Toy que não parava sossegado: ele era saltos nas cadeiras, golpes de kung-fu na atmosfera, parecia totalmente alterado pela presença de uma plateia. Passados uns minutos entrou uma mulher e disse que “o miúdo é terrível, ah ah ah, imaginem só que outro dia partiu o braço à irmã em directo, ’tá quieto ó não sei quantos”… Todavia a inquietação do não sei quantos continuou embora nos tivéssemos mantido a conversar indiferentes ao seu espectáculo. Até que avançou para a esperada cartada emocional, que surpresa, somos todos iguais, mamíferos amacacados: os telemóveis estavam em cima de uma mesa à nossa frente, o puto estica o braço para pegar o meu e diz “-empresta-me o telemóvel”. Eu respondi calmo mas firme: “-Não.” A mão dele parou subitamente antes de lhe tocar, ficou muito confuso, via-se no olhar que estava a processar mentalmente a palavra, no entanto o cérebro não conseguia entendê-la; ao fim de longos e embaraçosos segundos em silêncio de mão no ar ganhou ânimo para retorquir incrédulo: “não?!” “Não” -repeti eu com a mesma tranquila firmeza. Então recolheu o bracinho e saiu cabisbaixo da sala, acho que lhe fundiu um fusível. Compreende-se, aparentemente o sistema desconhecia a palavra “não”.
Um dia a minha filha publicou na sua conta do Instagram um quadrado cinzento. Obteve quarenta e tal “gostos”. Sorrindo perante tal absurdo perguntei-lhe do que se tratava. Explicou-me que pretendeu arranjar esteticamente a conta, e aquilo seria um “separador”. Nessa caso porquê os “gostos”? Não sabia, contudo depois de cogitar um pouco aventou a hipótese de as pessoas percorrerem as publicações em alta velocidade através do polegar, e quando veem o nome de um conhecido automaticamente colocam um “gosto”. A possibilidade de deixar um “gosto” ou “não gosto” em publicações pretende ser uma expressão democrática, em algumas plataformas salvaguardada pelo anonimato. Na verdade é uma maneira frívola de julgar, apesar disso até aceito a existência do “gosto”, já a do “não gosto” custa-me a aceitar. Nunca pus um dislike fosse onde fosse nem nunca porei, é das poucas coisas que tenho a certeza. Se me desagrada passo ao lado, se incomodar muito, respondo. Ver dislikes numa publicação é o mesmo que olhar para um prédio bombardeado; várias publicações com dislikes assemelham-se a um cenário de guerra, aquilo em que se tornou o ambiente digital. Então para que vou lá eu mandar mais um míssil? Os “gostos” e “não gostos” não têm grande valor, na sua génese seriam apenas um jogo de modo a gerar aprovação e conflito, ou seja fluxo, servindo aos autores para aquilatar e manipular os leitores, explorando-lhes os sentimentos. Nada disto seria importante se não tivesse atingido proporções perigosas: se por um lado a opção de resumir tudo a um sim ou não retira peso, por outro acrescentou-o ao banalizar o bem e o mal, o que convém a esferas de poder menos escrupulosas. As publicações começaram por só possuir a opção “gosto”, depois veio a “não gosto”, e agora representam uma parábola da vida. Andamos a ver e a ajuizar o mundo a preto e branco desdenhando outros matizes. Quando o bom se banaliza há necessidade de aparecer o mau para dar sabor, contrabalançar; quando o mau se banaliza criam-se condições para o surgimento de regimes totalitários. Julgo haver um caminho alternativo e não é criando nas redes uma terceira opção “talvez”, é desbanalizando o sim, o “gosto”. Suponho que seja difícil uma vez que vivemos nesta dialética e os modelos que mais apreciamos são os que a fomentam. Não obstante se algo de positivo a pandemia trouxe foi a oportunidade de valorizarmos o bom. Saibamos aproveitá-la antes que nos afundemos no obscurantismo.
*Músico e embaixador do Plataforma