Sendo eu músico entendo o motivo de esta arte ser apelidada de linguagem universal. Todas as artes são formas de expressão da mesma língua, porém considero a música a primacial porque se baseia em padrões vibratórios, aquilo de que o universo é feito, segundo a teoria das cordas na física quântica. Se o princípio da incerteza nos diz que nada está em repouso absoluto, se matematicamente provadas existirão umas 10 ou 11 dimensões, e vivendo nós aprisionados em 3, a música leva-nos a transcender a limitação tridimensional, faz-nos sentir ligados ao universo, sobretudo àquelas dimensões escondidas ou enroladas a que nunca acederemos fisicamente. Deste modo a música exprime a linguagem universal da alma, onde sentimos a vibração das partículas de matéria em todas as dimensões, produzindo múltiplos entrelaçamentos com as nossas. “Representar é largamente sobre pôr máscaras, e a música sobre removê-las” – Hugh Laurie. “Só quero fazer o que realmente quero fazer; senão contento-me em ficar a tocar guitarra o dia inteiro” – Eddie Murphy.
Há uma outra linguagem universal, a espiritual, que resulta da força criadora do mundo, e a partir da qual suspeito que todas as outras línguas evoluíram; conhecemo-la como “amor”, deter-me-ei sobre ela um dia.
A terceira linguagem universal é o humor, e esta é fruto do intelecto. Encontra-se nos seres vivos que recorrem ao cérebro para se questionarem e questionarem o mundo, valem-se dele para fins recreativos não necessariamente associados à sobrevivência ou reprodução. Está presente em poucas espécies além da humana, manifestando-se na disposição para jogar, com o único propósito de obter prazer disso. Em toda a criação, que se saiba, rir será uma faculdade exclusivamente humana. “Uma coisa maravilhosa sobre o verdadeiro riso é que ele destrói qualquer tipo de sistema divisor de pessoas” – John Cleese. “Uma das coisas boas do humor é a capacidade de unir as pessoas. A minha família, ao dar o Don Rickles, juntava-se em frente à lareira. Queríamos todos vê-lo e ríamo-nos todos da mesma coisa, e quando todos se riem da mesma coisa há um sentimento especial” – Bill Maher. “O humor retira peso às coisas. Não é por acaso que sempre que há uma tragédia, no dia seguinte já há piadas sobre a tragédia. Rir alivia o problema, torna-o mais manejável, e por isso mais humano” – Ricardo Araújo Pereira. Em razão de o humor ser uma linguagem da inteligência, presta-se a confusões e diversas interpretações conforme a cultura ou graça de quem emite e recebe, mas penso que para chegar ao patamar de nos fazer rir, um humorista conhece, no mínimo intui as duas outras formas de comunicação, a espiritual e a da alma. “O humor compreende também o mau humor, o mau humor é que não compreende nada” – Millôr Fernandes. Sabedor destas linguagens afigura-se difícil um humorista ser genuinamente xenófobo, racista, ou cultivar outras formas de intolerância, ainda que da sua boca se soltem piadas sobre esses temas.
“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós” – José Saramago. Um humorista sai de si, vê-se, vê o mundo fora do ego, e ao processar essa imagem apercebe-se da real dimensão das coisas, que pode ser muito diferente da que nos é transmitida. “Quando digo que somos tão insignificantes (os humoristas), a maior parte das pessoas dizem que se sentem mal. Eu sinto-me bem por ser insignificante” – Jerry Seinfeld. No fundo todos nascemos munidos de discernimento para avaliar, mas a vida vai-nos empurrando para estados delirantes, afastando-nos da nossa essência, havendo inclusivamente quem viva toda a vida fora dela. “Algumas pessoas veem coisas que são e perguntam porquê? Alguma pessoas sonham com coisas que nunca foram e perguntam porque não? Algumas pessoas têm de ir trabalhar e não têm tempo para tudo isso” – George Carlin. Os humoristas fazem-nos rir chamando a atenção para discrepâncias entre a realidade onde estamos imersos, e outras. Não que sejam seres perfeitos, ninguém é, eles próprios podem exibir presunção e arrogância, mas quase sempre estas características derivam da consciência de que não são geniais, porquanto reconhecem os verdadeiros génios, e sim por constatar que os outros é que são maus demais. Se a mediocridade ao seu redor se torna orgulhosa, certos humoristas caem na armadilha de reagir da mesma forma. Não se acham detentores da verdade, nem sequer possuem uma, é a visão monocular que os irrita sabendo que há outras. Por isso chegamos a gostar de um tipo pessoalmente execrável mas engraçado, admiramos a sua forma de pensar única. “Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio” – Groucho Marx.
Hoje existe um grave problema de liberdade de expressão; é grave pois não parece ser um problema, e o problema é o mundo estar cheio de convicções e vazio de pensamento. “Todo este ódio e violência tem sido facilitado por uma mão cheia de companhias que aumentam a maior máquina de propaganda da História. Facebook, YouTube, Google, Twitter e outras alcançam milhares de milhões de pessoas. Os algoritmos de que estas plataformas dependem, deliberadamente amplificam o tipo de conteúdo que mantém os utilizadores ligados a elas, histórias que apelam aos nossos instintos básicos, e que provocam ofensa e medo”. “Quando o Borat pôs um bar inteiro no Arizona a cantar atirem o judeu ao poço isso revelou a indiferença das pessoas pelo anti-semitismo. Quando – enquanto Bruno, uma personagem gay da moda – me pus a beijar um homem numa jaula no Arkansas, quase iniciei um motim, e isso revelou o potencial violento da homofobia” – Sacha Baron Cohen. “Criticar uma pessoa pela sua raça é manifestamente irracional e ridículo, mas criticar a sua religião é um direito, uma liberdade. A liberdade de criticar ideias, quaisquer ideias, ainda que sejam crenças sinceras, é um dos fundamentos da nossa sociedade. O direito a ridicularizar é muito mais importante do que qualquer direito a não ser ridicularizado porque o primeiro representa abertura e o segundo opressão” – Rowan Atkinson. “Todos concordam com a liberdade de expressão até ouvirem algo de que não gostam, mas só porque ficas ofendido não significa que tenhas razão” – Ricky Gervais. “As pessoas apreciam a tua honestidade até seres honesto com elas. Então passas ser um filho da mãe” – George Carlin.
Da maneira que as coisas estão os humoristas cada vez mais se desalinham do pulsar do mundo, bordejando entre duas barricadas acéfalas. De um lado os que se agrupam à volta do agora designado “politicamente correcto” (“as pessoas confundem o tema da piada com o alvo da piada e raramente são o mesmo – Ricky Gervais)”, do outro a livre barbárie de cada um vomitar as suas convicções não admitindo contraditório (“se qualquer coisa é chocante sem ter graça, é difícil de justificar” – Seth MacFarlane). A inteligência de quem não se engaja nestas facções parece ofendê-las imenso e uma vez que os burros tendem a ver o mundo à sua medida, é do tamanho do mundo a capacidade de se ofenderem. Esta tensão, mais que limitar o humor está a afogar o pensamento livre, e isso é um caminho muito interessante para quem pretende controlar-nos. Daí o estímulo às convicções, cristalizações mentais que servem para nos passar uma falsa sensação de segurança. Termino com dois exemplos de matéria-prima comum nos dias que correm; resumem a trágica comédia que é a ausência de pensamento. Após o falecimento de Maradona as redes sociais foram inundadas de publicações onde as pessoas lamentavam a morte de… Madonna. Avançaram imediatamente para o “RIP Diva” sem ao menos lerem o nome do defunto. Ontem André Ventura passou a proibir críticas que causem danos à imagem do “Chega”. A decisão surgiu na sequência de uma publicação feita por um candidato à distrital de Braga que visava a presidente da mesa da assembleia distrital, uma brasileira. Este desventurado terá sugerido no Facebook que não será uma brasileira que vai mandar nos destinos de um partido nacionalista. Coitado, talvez julgasse que a ideologia do partido onde milita era outra, não deveria ser castigado por não perceber, mas desconfio que a brasileira também não percebe. Já aqui disse noutra crónica, o único que deve perceber é o Ventura, afinal o partido é ele, e para acabarem as confusões para fora censura-se o pio.
*Músico e embaixador do Plataforma