Início Opinião “O essencial e o supérfluo”

“O essencial e o supérfluo”

João MeloJoão Melo*

Miguel Andrade é um jovem estudante do conservatório do Porto que sempre sonhou percorrer uma carreira na música. Devido à pandemia, aos 20 anos vai esfriando o entusiasmo. Ontem, em mais uma tarde de confinamento obrigatório, os pais pediram-lhe que pusesse o lixo na rua. Ao pé dos contentores encontrava-se um… DeLorean com a porta aberta. Não, não era possível: o carro do filme “Regresso ao Futuro”? Ávido consumidor do entretenimento de Hollywood sabia bem o que aquilo representava, e inebriado pela curiosidade não pôde deixar de o experimentar: entrou no automóvel disposto a viajar ao futuro. Sabedor dos clichés dos filmes lembrou-se de baixar a pala do sol, e sim, lá estava a chave da ignição. Ligou o motor, introduziu a data de 2025, partindo direito à VCI; acelerou até aos 130km/h indo parar a 1995. Sem se aperceber passara sobre uma das inúmeras lombas das ruas do Porto, o painel digital do tempo desengonçara-se, acabando por comutar a data. Estacionou perto do Coliseu e aceitou o repto do destino, dispondo-se a apreciar a cidade tal como era 5 anos antes de nascer. A primeira coisa que notou foi em ruas cheias de pessoas, e nenhuma absorvida por smartphones. Num quiosque viu imensos jornais desconhecidos: Comércio do Porto, Primeiro de Janeiro, Diário de Notícias, A Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular… Todos estampavam na manchete a ameaça de venda do Coliseu à Igreja Universal do Reino de Deus. Andou até ao Majestic, uma multidão na esplanada rodeava uma mesa onde se sentava Pedro Abrunhosa assinando autógrafos; ninguém tirava selfies com a vedeta. Entrou no café e lá dentro, sozinha a um canto, escrevinhando num guardanapo (será possível?) J.K. Rowling! Ninguém lhe pedia autógrafos. Seguiu pela rua e reparou que não existia a estação do metro dos Aliados. Desceu até à praça da Liberdade e o McDonald’s chamava-se café Imperial. Determinado em ir ao futuro, quem sabe, sacar um sucesso musical e “criá-lo” muito antes da época, voltou ao carro e re-introduziu o ano de 2025. Depois de nova viagem no tempo deu consigo num sítio estranho. Sem se aperceber passara sobre um dos inúmeros buracos das ruas do Porto, o painel digital do tempo desengonçara-se, acabando por comutar novamente a data: 2020. Estava no mesmo sítio mas era um Porto diferente daquele de onde partira há uma hora. A fachada assimétrica do Coliseu concebida por Cassiano Branco fora “acertada”. O icónico hotel Coliseum, contíguo ao edifício, encerrado. Do quiosque dos jornais nem sombra. Mais à frente o café Majestic estava fechado. As pessoas vestiam fatos cinzentos iguais, movimentavam-se apressadas, isoladas, de olhar vazio, parecendo evitá-lo. Compreendeu que a sua roupa colorida causava um gritante contraste com o ambiente ao redor. Poucos minutos decorreram até surgir um carro da polícia, e escutar uma voz robótica ecoando na rua: “cidadão, deite-se no chão de barriga para baixo!” Obedeceu sendo imediatamente encoberto por polícias de farda negra que o algemaram e levaram a um calabouço; lá encontrava-se outro indivíduo exibindo marcas de espancamento. Confuso, sem compreender o absurdo da situação, sequer soube o que responder quando o outro lhe perguntou “és do movimento?”

Após Miguel tentar explicar a sua história, o interlocutor no mínimo sentiu a genuína ignorância do novo companheiro de cela, contando-lhe então o que sucedera nos últimos 25 anos. Em 1995 surgiu uma pandemia viral que desestabilizou o mundo; houve um colapso generalizado dos sistemas de saúde, empresas faliram, o desemprego subiu em flecha, países entraram em bancarrota, a pouco e pouco as actividades supérfluas desapareceram. Decretou-se o fim do lazer, as deslocações particulares fora da área de residência, logo acabaram também as viagens, o turismo, e toda a actividade hoteleira. Com a população habituada à escassez, as artes foram sendo suprimidas tornando-se inclusivamente ilegais em 2000. Pode soar estranho, todavia não se verteu uma lágrima perante esse desfecho: um quinquénio de doutrinação baseada no conceito de que os artistas são parasitas vivendo “à mama” de subsídios, ao passo que sectores essenciais estrebucham, foi quanto bastou para a sociedade os ostracizar e de seguida reprovar. As entidades envolvidas na área artística sentiram-se compelidas a converterem-se a outras mais “úteis”. Finalmente proibiu-se a literatura, humor, circo, artes gráficas, música, teatro, cinema, pintura, escultura, arquitectura, fotografia, BD, jogos de vídeo, arte digital, artesanato, e até o desporto. Nunca chegámos a ter o prémio Nobel da Literatura, nunca se publicou o Harry Potter, nunca ganhámos o eurofestival da canção, o Abrunhosa deixou de cantar (?), não tivemos de aturar macarenasgangnam styles e reggaetons, nunca ninguém se riu com os Gato Fedorento, não chorámos de emoção com a vitória no Europeu de futebol, o Coliseu foi vendido à tal igreja, convertida na religião do Estado e único escape/entretenimento permitido, não existiu Facebook, Twitter, Instagram, Tik Tok, Youtube, etc. uma vez que a escrita, fotos e filmes fazem parte do índex. Aos que na presente linha temporal se interrogam se não será demasiado efabulado proibir a escrita, informo que em 2002 estive 33 dias fechado num reality show, onde além de privado do contacto exterior não me foi permitido levar papel ou caneta; as pessoas habituuuuam-se, creiam. Neste 2020 alternativo a televisão só dava notícias ao género “Coreia do Norte”, sem reportagens, cor ou cenário, não havia internet, e ninguém ousava desafiar a ordem pública. É natural, quanto mais não fosse pelos milhares de câmaras de vigilância espalhadas em todo o território, incluindo dentro de casa. O mundo transformara-se numa distopia orwelliana e a maioria não entendera como se atingira esse ponto, aliás nem questionava, os velhos morreram, os novos nunca conheceram outro modo de vida, a transmissão de conhecimento interrompeu-se. Entre as revelações, o companheiro de Miguel no calabouço confessou-lhe ser um actor que pertencia ao clandestino “Movimento”. Segundo ele, o principal motivo do actual estado de coisas devera-se à abolição das artes, os grandes motores do pensamento crítico, as livres provisoras de esperança e visões alternativas. Apesar de se considerarem inúteis em tempos difíceis, os artistas foram, são, e serão capazes de expressar em palavras, obras ou imagens, formas de nos pôr a pensar, confortar, e reacender a esperança, tudo actividades consideradas perigosas na perspectiva de quem almeja um mundo de robots acéfalos, ordeiros. Claro que se pode viver sem artes, os animais passam bem sem elas, mas viver para quê? 

Antes de ser arrastado do calabouço em direcção a uma sala de interrogatório, Miguel já se debatia com uma dúvida angustiante: estaria ele infectado com o Covid-19 quando viajou ao passado, e teria sido ele inadvertidamente a desencadear o inferno do qual não vislumbrava maneira de escapar?

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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