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Educação em tempos de pandemia: constatações e equívocos

Alexandra VieiraAlexandra Vieira*

Tempos extraordinários requerem medidas extraordinárias. Esse foi o desafio lançado às escolas em meados de março. A resposta da Escola Pública foi pronta e ágil, mas, desde logo tornou visível a razão pela qual o ensino tem de ser presencial. Os moldes em que vai ocorrer a partir de setembro tem levantado dúvidas e causado angústias a todos os envolvidos. Mas algo há como certo: para que as aprendizagens ocorram, os alunos e alunas têm de estar na escola. O ensino a distância é uma alternativa e um complemento.

Sobre o desafio da transição para o ensino (vagamente) a distância (EaD) a que o confinamento obrigou há um conjunto de constatações a analisar. Sobre o regresso ao ensino presencial, múltiplas foram as vozes que se ergueram apontando os equívocos. De umas e de outros daremos conta, ainda que não de modo exaustivo, mas como forma breve de contributo para a análise.

Primeira constatação: professores e professoras abraçaram o desafio o melhor que podiam e sabiam, num processo de autodidatismo e de entreajuda, tendo em vista não deixar nenhum aluno ou aluna para trás. Neste processo, foram fundamentais os pais e até os avós, transformados em tutores improvisados e mais ou menos habilitados para o fazer, sobretudo no caso dos alunos mais novos. Há exemplos bem-sucedidos, outros que fizeram a transposição literal de um ambiente para outro, com o avolumar de trabalho que implicou.

O mais acertado por parte do Ministério da Educação seria considerar o próximo ano letivo como ainda um ano de exceção, como serão os próximos

Segunda constatação: a invisibilidade de um grupo alargado de alunos e de alunas causada pelo confinamento e pelo EaD. Por razões diferentes muitos desapareceram e foram de localização difícil. Desde logo, ficou visível que nem todos têm o equipamento informático e comunicacional necessário. Outros tornaram-se invisíveis devido à sua proveniência cultural, tendo sido interrompido o processo de inclusão. Outros ainda, por terem necessidades educativas especiais/específicas, ficaram sem os apoios, sem as terapias, sem a socialização fundamental em muitos casos. No caso do ensino profissional e do ensino artístico, as aulas práticas, os estágios e a prova de aptidão profissional ficaram comprometidos e os subsídios esquecidos.

Terceira constatação: o EaD não é adequado aos primeiros anos de escolaridade, nem à educação de infância. Aprender requer uma interação pessoal forte e ensinar implica conhecimentos de didática e de pedagogia. Os mais pequenos, desde as crianças  do jardim de infância até aos alunos do 6.º ano tiveram muitas dificuldades em se adaptar ao ensino a distância e há de certeza aprendizagens que não se realizaram. Neste caso específico a escolaridade dos pais terá sido determinante nas aprendizagens. Porém, sabe-se que, na generalidade, os pais têm dificuldade em acompanhar os conteúdos e descobriu-se qual é o papel dos professores e da pedagogia. Há ainda a questão da afetividade, essencial na socialização e no ato de aprender

Quarta constatação: o modelo de acesso ao ensino superior está desajustado. Embora o regresso às aulas  em maio dos anos de exame de acesso, como o 11.º ano e o 12.º ano se prenda com o necessário desconfinamento, obedeceu à ditadura dos exames fundamentais para o ingresso, mas que, mesmo assim, obrigou a um conjunto vasto de ajustes que demonstram a vacuidade do processo e criou um chorrilho de injustiças do qual vai ser difícil recuperar.

Quinta constatação que é, agora, impossível de negar: a Escola Pública tem um papel relevante na diluição das desigualdades sociais e de todas as formas de exclusão. Sendo impossível resolver estes problemas sozinha, dada a sua complexidade e abrangência, é, pelo menos, o lugar onde umas e outras se atenuam, quer pelo acesso aos bens culturais que a escola oferece, como a Biblioteca, os Laboratórios, incluindo os de informática, quer pela disponibilização dos apoios necessários à diversidade de alunos e de alunas que a frequentam. É também a escola o local onde as vulnerabilidades relacionadas com carências económicas, fracas condições de habitabilidade ou exposição a situações de violência e de negligência são detetadas.

Última constatação: não houve palmas para os professores por parte do Ministério da Educação. Não se fala de pressão de que foram alvo, da duplicação de trabalho de que foram vítimas, do excesso de burocracia, das inseguranças quanto aos processos, nem do quanto faz falta a formação contínua de professores, desde as ações de formação, aos congressos, encontros e seminários e aos cursos de pós-graduação.

Ora, assim sendo, o mais acertado por parte do Ministério da Educação seria considerar o próximo ano letivo como ainda um ano de exceção, como serão os próximos. Isso obrigaria a um plano de médio prazo e não apenas para um ano letivo que, em muitas dimensões, recupera os tempos da escola pré-covid, de que são exemplo os exames nacionais.

Este é um dos primeiros equívocos: nem a escola nem o resto da sociedade e das atividades poderão ser como eram antes da pandemia, durante um longo período de tempo, que será de anos. A questão não está apenas no controlo dos surtos da doença, mas sobretudo na sua prevenção, que é a única forma de proteger todos os que têm de frequentar a escola. O plano do Ministério da Educação, traduzido em dois documentos orientadores, prepara, debilmente, diga-se, a reação a um surto, mas é fraco na prevenção.

Desde logo, porque as orientações enfermam de um conjunto de equívocos. O primeiro equívoco é supor que as escolas têm direções. Não têm. Têm diretores plenipotenciários que nomeiam vice ou subdiretores e assessores, sem nenhum escrutínio democrático. Com é possível articular uma resposta extraordinária, sanitária e de urgência em organizações não democráticas e em que as decisões cabem a uma pessoa, tenha ela bom senso ou não. Invocar no discurso uma suposta autonomia, neste quadro, significa apenas desresponsabilização do Ministério da Educação.

O segundo equívoco é a visão atomizada da escola. O Ministério da Educação decidiu as orientações sem articular com os transportes nem com as condições de trabalho dos pais. Por exemplo, não está previsto o desencontro do início das aulas com os horários laborais, nem está previsto o alargamento dos apoios à família. Cada concelho e cada escola/agrupamento estão a fazê-lo por si. Outro sinal da visão atomizada é não considerar os alunos e as famílias como parte integrante das orientações, como se o aluno só exista depois de passar o portão da escola. Não tem de ser transportado nem tem uma casa, com mais ou menos condições de habitabilidade. Cai por terra a teoria da “bolha”: alunos concentrados na mesma sala, sem intervalos, com todos os passos controlados, mas apenas do portão para dentro.

O terceiro equívoco, que é também uma teimosia, é o do não considerar as escolas e o próprio Ministério da Educação na linha da frente no combate à pobreza infantil. Se a resposta à pobreza tem de ser enquadrada pelos apoios sociais, é a escola que está melhor posicionada para detetar as carências, das quais já demos conta neste texto. O exemplo deste equívoco teimoso é a recusa em abrir as cantinas escolares nos meses de verão.

O quarto equívoco é o de considerar que dotar os alunos de computadores contribui para resolver o problema da falta de literacia digital. Resolve, numa parte, mas não é uma solução mágica. É necessária formação dos professores e dos alunos. Além disso, há muito que as escolas precisam da renovação do parque informático e das redes de internet. Nada se diz sobre a criação de uma plataforma de EaD criada e disponibilizada pelo Ministério da Educação. Professores, alunos e pais estão limitados às ofertas do mercado e sujeitos a todo o tipo de publicidade indesejada.

Outro equívoco, mas já habitual e traduzido na frase de eleição deste Ministro que já vem da legislatura anterior: “façam o possível e o impossível, mas com os mesmos recursos”. Não se desdobram as turmas, não porque não seja uma medida acertada em termos de prevenção (que é o mais importante), mas simplesmente porque é uma medida demasiado cara. Não se desdobram turmas porque há doze anos que este país vê paulatinamente escola atrás de escola, jardim de infância atrás de jardim a encerrar e agora não há espaços escolares que suportem turmas desdobradas, em nome de uma quebra demográfica, bramida aos 4 ventos, em lugar de equacionar as vantagens pedagógicas de turmas com 15 alunos. Desde logo, a proximidade aluno‑professor tornaria desnecessários professores tutores e planos de promoção do sucesso. Outro motivo pelo qual não há desdobramento tem a ver com a falta de professores. De ataque em ataque à profissão docente, tornaram-na de tal modo pouco atrativa que neste momento já não há professores para suprir as necessidades. Dos 30 000 professores e educadores dispensados já poucos quererão regressar ao inferno dos concursos, bolsas de recrutamento ou a carreiras com normas travão.

Se, por um lado, se compreende a desorientação do Ministério da Educação, que procurou sempre acertar o passo com os seus congéneres europeus, também eles desorientados, e continua a acertar, por outro, ao não ouvir sindicatos, professores, associações de professores e até mesmo os diretores e pais, perdeu a oportunidade de ter um consenso alargado , enriquecido pelas experiências dos que estiveram no terreno e na linha frente da Educação e da Escola Pública e de ser proativo. Colocar a tónica na autonomia das escolas, seja lá o que ela for nas cabeças dos decisores políticos, é apenas um sinal da desresponsabilização do Ministério da Educação. Mas, se tudo correr bem, chamará a si o mérito, certamente.

*Deputada do Bloco de Esquerda (BE) – Portugal

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