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A epidemia de estátuas a cair

Ferreira Fernandes*

Se os vencedores é que escrevem a História, calculem o que acontece com as estátuas! Estas sendo cânticos de glória em pedra, como podem representar os que perdem? Os generais secessionistas perderam a Guerra Civil americana (1861-1865), a que título queriam eles, perdedores, ser lembrados nos pedestais públicos e montados a cavalo?

Os generais sulistas estão a ser apeados das estátuas, não porque o seu líder militar, o general Robert E. Lee, tal como a maioria dos seus companheiros, foi escravocrata. Sim, ele tinha uma plantação na Virgínia com escravos e chicoteava os seus negros que tentavam escapar-se para o norte. Mas o que vai levar Lee, agora, a acabar escondido num armazém, não é uma reavaliação popular, foi ele ter sido obrigado a render-se em abril de 1865. Ele perdeu, então, o poder real; e só  agora o simbólico veio por arrasto.

Foi preciso um pouco mais de um século e meio para se reconhecer que Lee e os outros generais sulistas não mereciam estar montados em jardins e dar nomes a bases militares, enfim, serem motivo de admiração. O que levou, de facto, às quedas das estátuas, foi a antiga rendição. A História move-se por relações de força.

E é por isso que estas, tanto no ato de as erigir como no seu derrube, devem ser deixadas preferencialmente mais aos estados do que às multidões

Outro assunto é Thomas Jefferson e George Washington, que também foram donos de plantações de escravos mas continuam ambos esculpidos no monte Rushmore, estampados em notas de dólares e enchendo a geografia americana, a dar o nome a dezenas de localidades, à capital do país e até a um estado. A eles não lhes foi negada, nem é, a representação simbólica. Jefferson e Washington nunca deixaram de ser pais fundadores da pátria nem perderam o poder. E ainda bem, pois precisamos deles.

O general sulista Robert Lee foi um razoável estratego e continuará a ser estudado na Academia Militar de West Point, mas só aí e por especialistas. Deixou de merecer estátua pública e o público não perdeu grande coisa em informação e formação: o personagem histórico Lee não as tinha para dar. O destino, portanto, escreveu bem e por linhas direitas ao castigar aquele esclavagista com o esquecimento.

Nos casos de George Washington e Thomas Jefferson, porém, já há boas razões para não serem esquecidos. Fundaram um estado republicano, laico, progressista e democrático, apesar de ele ter nascido com males tão grandes como a escravatura, de que, aliás, nem um nem outro eram inocentes. E seria uma pena esses dois pais fundadores dos EUA perderem as estátuas (e mais e mais) que continuam a glorificá-los. Uma pena para nós, que seríamos os mais castigados com essa perda. Os símbolos suscitam atração, exercem influência, expõem, e sem eles seríamos menos incentivados a aprender como a História pode evoluir e nunca é linear. E que evoluindo ela até cria condições para destruir males tão grandes como a escravatura.

Quer dizer, Washington e Jefferson, embora proprietários de escravos, desataram o andar da História que levou, décadas depois, entre outros conseguimentos, ao passo fundamental do derrube da escravatura na América. A História é sempre ambígua, contraditória, enfim, é feita por homens.

Também se pode dizer que ela é estranha. Como exemplo lembro o general Stand Watie, que foi subordinado e companheiro de armas de Robert Lee. Este, como já foi dito, rendeu-se em abril de 1865, o que anunciou o fim da Confederação esclavagista. Mas Lee não proclamou a rendição definitiva, o último general sulista a render-se foi Stand Watie, em junho de 1865. Ele, que era chefe índio cherokee, entregou-se com o seu batalhão, constituído por índios de várias tribos e também por negros.

É por isso que quanto mais soubermos da História mais relativizamos as estátuas. E é por isso que estas, tanto no ato de as erigir como no seu derrube, devem ser deixadas preferencialmente mais aos estados do que às multidões. Não que seja mais justo assim, mas ao menos não dá ilusão de poder a quem não o tem. 

*Jornalista

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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