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Atrás da máscara

João Melo

“Tem cartão cliente? Não. Vai desejar factura? Não. Quer saco? Não.” Fico sempre com a sensação de ser um tipo negativo, antipático, que não colabora.

Após este ritual robotizado, o “bom dia e obrigado” é a autorização para me libertar duma situação constrangedora, não soa genuíno, digo ou ouço com efeito Doppler enquanto me piro dali. Se optar por uma caixa automática em que uma voz me manda executar as tarefas que seriam dos humanos, a sensação não é muito diferente: são bonecos a falar pr’ó boneco.

Num restaurante de fast food vejo três sabores disponíveis num painel e peço um cone de morango. A empregada pergunta-me: “quer um sundae?” Procuro no painel o que será um sundae, as páginas vão virando mas só vejo copos de plástico. Isso não, e volto a dizer que quero um cone de morango. Responde que não há. O silêncio vai pesando à medida que vou observando cones expostos na vitrine, e quando no outro balcão surge o anúncio do cone aponto feliz como um miúdo estrangeiro que não se fazia entender: “aquilo! Quero aquilo, está a ver? Um cone”. Ela insiste: “não há”. Sem perceber porque faz questão de me contrariar, pergunto com clareza: “está-me a dizer que não tem cones?”

É que o convívio forçado com códigos binários levou a que sub-repticiamente eu me transformasse num destes seres, dei conta de estar também meio dormente

Por segundos ela largou o registo mecanizado, balbuciando num tom baixo e comprometido “quer dizer, cones há…” Recompôs-se rapidamente e em linguagem formatada informou que só vendem cones com sabor de baunilha. Nos últimos anos têm surgido artigos que levantam a questão “será que os robots vão tomar conta dos nossos postos de trabalho?” É óbvio que sim, neste momento até já estão ocupados por robots orgânicos.

Isto foi a primeira fase. Agora a pandemia veio implementar a total desumanização, com barreiras de acrílico, máscaras que escondem as expressões faciais, marcas no chão com setas e limites para os robots circularem ordeiramente. Enquanto não pudermos fugir a esta contingência, seria bom ter presente que ouvir e repetir banalidades vai subtraindo humanidade.

É que o convívio forçado com códigos binários levou a que sub-repticiamente eu me transformasse num destes seres, dei conta de estar também meio dormente. Ontem quando a funcionária da caixa do supermercado me fez a pergunta, não ouvi de facto, presumi-a, respondi sério, pondo as pessoas ao redor a rir e a ela embaraçada. Depois, quem estava comigo contou-me que o diálogo foi “-vai desejar saquinho? – Não, quero é um saco, se faz favor”

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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