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À espera de um país novo

As eleições de Moçambique, que decorreram na terça-feira, constituem um desafio para o futuro. As receitas brutais do gás natural podem mudar um país cujo partido de Governo não muda desde a independência. A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) lidera o país e é a favorita numa contagem em que os moçambicanos depositam esperanças. 

“Esta é a oportunidade que temos. Se a pessoa não vem aqui, perde a oportunidade de poder opinar sobre tudo o que possa acontecer”, afirma Isilda Zandamela, pouco depois de votar, em Maputo, capital. 

As memórias de quem construiu a independência vão desaparecendo e as novas gerações olham para o presente com outro grau de exigência. Filipe Augusto, 37 anos, votou pela primeira vez no bairro Chissui e exige ao novo Governo capacidade de lidar com os desafios do futuro: “Cheguei às seis horas. O que me fez chegar cedo foi poder votar para o meu país crescer, para ter emprego, temos falta de emprego”.

A elaboração de uma visão para o país, que honre “aqueles que deram a Agostinho Leite e Luís Fonseca vida pela libertação nacional e que confira maior dignidade às pessoas é realmente incontornável”, considera o sociólogo moçambicano, Elísio Macamo, professor de Estudos Africanos na Universidade de Basileia, na Suíça, em entrevista à Lusa.

“Infelizmente, não temos essa visão”, disse, em declarações recolhidas na véspera das eleições. O futuro Presidente moçambicano precisa de “uma esfera pública muito mais crítica e menos polarizada”, acrescenta o sociólogo. 

Reviravolta

Por outro lado, caso se confirme a vitória do atual presidente e candidato da Frelimo, Filipe Jacinto Nyusi, o académico afirma que “precisa de um partido que seja mais democrático”. Nyusi “precisa de um espaço onde ele próprio seja interpelado como dirigente, como líder, e onde seja desafiado a pensar o país. Infelizmente, neste momento, não tem esse partido”, reforçou Macamo.

O académico acredita, por exemplo, que o atual chefe de Estado, se for reeleito, não terá condições para fazer valer uma ação exemplar da Justiça moçambicana na questão das dívidas ocultas. “E isso não é apenas culpa dele”, sublinhou. “Tem muito que ver com o contexto, com as pessoas com quem ele trabalha no partido, sobretudo com a Comissão Política. Continuam a agir da mesma maneira, a não ser transparentes nas decisões”, explicitou. 

Noutro exemplo de opacidade, bastante mais “significativo”, Macamo chama a atenção para o facto de terem sido tomadas decisões “muito importantes” em relação à exploração “offshore” de gás e petróleo em Cabo Delgado, no norte do país, sem qualquer “consulta pública sobre o destino a dar aos proveitos”.

Mais uma vez, nesse contexto, “Nyusi fez o que pôde”, considera o sociólogo. “É um pouco como naquele ‘saloon’ no “farwest” com a mensagem afixada na parede: ‘Não atirar no pianista. Ele está a fazer o seu melhor’. É o que temos em Moçambique”, ironizou. 

Cabo Delgado, que se debate há dois anos com uma rebelião insurgente aparentemente relacionada com o extremismo islâmico e com a assinatura do grupo al Shabab, remete também para os desafios na área da segurança colocados ao próximo poder em Moçambique. 

 “A minha impressão é que estamos, também ali, perante um novo tipo de insurgência em África. E não é só em Moçambique que temos isso. Vemos isso no Congo, no Mali, nos Camarões, na Nigéria”, sublinhou. 

Não obstante, para o professor moçambicano, “também aí”, o desafio é político. “Por exemplo, há rumores de que estão lá tropas russas a combater ao lado do exército moçambicano contra os insurgentes. Essa é uma decisão que precisa de ser discutida pelo país. Essas coisas não podem ser feitas às escondidas”, afirmou. 

Um salto arriscado

Outra das questões relacionadas com a segurança prende-se com a forma como a Renamo irá, ou não, cumprir o acordo de paz assinado no verão passado. O caso do partido opositor histórico da Frelimo oferece, na perspetiva do analista, outro exemplo da vazio político. 

“Tivemos um processo de paz que ignorou completamente a sociedade, feito de forma secreta, sem consultas à população, e o que aconteceu foi a criação de instituições políticas que vão simplesmente atrair os piores políticos para um sistema neopatrimonial”, defendeu.

 “A Renamo, infelizmente, de partido político tem pouco, porque se acomodou neste papel de fazer chantagem sobre o Estado e essa é a única linguagem que conhece”, declarou ainda. 

Em conclusão, Elísio Macamo considera importante que a Frelimo e Nyusi renovem os seus mandatos porque Moçambique não pode dispensar a estrutura de que, ainda assim, dispõe. “Acho que um outro tipo de Governo seria um salto muito arriscado”. 

No atual contexto, o sociólogo diz não ser “pessimista ao ponto de dizer que os próximos cinco anos são de adiamento de soluções para o país”, porque “as pessoas aprendem”. 

No dia da votação, a esperança confundia-se com o desconhecimento. Em Trangapasso, a norte, Rebeca Lucas, era um desses exemplos: “Voto pela segunda vez, e voto pela primeira vez nas presidenciais”, mas o que leva “a votar ainda não sei bem. Não sei porque estou a votar”, nem as propostas dos partidos ou dos políticos, resumiu. 

E os riscos de fraude permanecem elevados. Várias tentativas de fraude eleitoral na província de Nampula (norte), todas a favor da Frelimo, foram já detetadas, segundo uma ONG moçambicana. A organização não-governamental (ONG) moçambicana CIP – Centro de Integridade Pública deu conta de que os seus correspondentes reportaram “casos de tentativas de enchimentos de urnas em Nampula”, em vários locais de voto. Numa delas, “uma escrutinadora de nome Selma Francisco foi encontrada com boletins de votos pré-marcados para a Frelimo, prestes a ser introduzidos nas urnas”, avança a organização.

Apesar disso, Isilda Zandamela insistiu que o importante é votar, para depois exigir a boa governação aos políticos. “Quem nem sequer valorizou este dia, não pode depois criticar qualquer coisa que seja. Se exercer o seu direito de voto, legitima qualquer opinião que possa dar para o desenvolvimento do seu país”, disse.  

Agostinho Leite e Luís Fonseca 18.10.2019

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