Nos 70 anos da República Popular da China, o PLATAFORMA foi saber o que pensam professores, alunos e analistas sobre a educação patriótica. O tema é polémico mas a maioria concorda: História sim, propaganda não.
A República Popular da China faz 70 anos na próxima terça-feira, 1 de outubro. O Amor à Mãe Pátria – assim em letras maiúsculas – é tónica frequente nos discursos oficiais de Pequim, Macau e Hong Kong. O ensino é mencionado como um veículo privilegiado para esse amor com enfoque na educação patriótica. Em ambas as regiões já esteve em cima da mesa passar a ser uma disciplina.
Ainda este mês, o diretor do Gabinete de Ligação do Governo central em Macau afirmava que os professores deviam ajudar os alunos a seguir “os valores corretos”. Numa palestra, citado pelo jornal Ou Mun, Fu Ziying realçou que após o regresso de Macau à Pátria o desenvolvimento económico e social alcançou conquistas universalmente reconhecidas, principalmente no setor da educação, que para o responsável se tornou um exemplo do princípio “Um País, Dois Sistemas”.
Fu frisou ainda que os professores devem ser um modelo e transmitir a tradição de “Amar a Pátria e Amar Macau, que, independentemente das diferenças, deve haver valores comuns e que espera que os docentes ensinem a história do país de forma abrangente e precisa, para promoverem a cultura chinesa e o amor patriótico nos jovens”.
O PLATAFORMA procurou falar com as associações de estudantes de todas as universidades de Macau sobre a educação patriótica, mas só duas responderam. (Ver caixa 3).
Para Hérmes Trabuco, vice-presidente da Associação de Estudantes da Universidade de São José (USJ), tudo depende de como é ensinada.
Sobre se devia ser uma disciplina obrigatória, Trabuco responde que “qualquer tipo de conhecimento é uma mais-valia”. “Gostemos ou não, é formação. Tendo em conta que nas universidades só se vai para se estudar o que se gosta, é justo que os alunos tenham também de se sujeitar a conteúdos/valores considerados importantes para a universidade”, afirma o aluno do 4º ano da licenciatura de Media e Comunicação.
A Associação de Estudantes do Instituto Politécnico de Macau (IPM) considera indispensável conhecer-se a história e cultura do país onde se vive, mas de forma neutra. “Tem de se ser objetivo”, salienta.
À pergunta se devia ser uma disciplina obrigatória no ensino superior, os alunos do IPM devolvem que podem sempre procurar saber sobre o tema de forma autónoma. “No fim de contas, somos todos adultos e temos o direito de estudar livremente”, vincam.
Gary Chao, da New Macau Youth Association, afirma que a educação patriótica é muito importante na escola, sobretudo para as gerações que nasceram na era de paz e prosperidade. “A China e a nossa população sofreu com as guerras e dificuldades nos tempos modernos. A sobrevivência da nossa Nação enfrentou desafios grandes. Os jovens têm de perceber que não podemos tomar a paz como garantida, e que temos de respeitar e estar agradecidos pelo esforço dos nossos pais e antecessores”, defende.
Hérmes Trabuco, da USJ, refere que, ao contrário de Hong Kong, a verdade é que em Macau “ninguém quer realmente saber” sobre o debate em torno da educação patriótica. “Hong Kong é que é o filho rebelde”, sublinha.
O vice-presidente da associação define ser patriota com o sentir orgulho em fazer parte e representar um país. Um sentimento que desvaloriza. “Qualquer Nação pode cair. A identidade somos nós, e é uma ideia que pode ser reconstruída, trabalhada e melhorada sempre. É muito perigoso quem associa a identidade à Nação”, conclui.
O professor George Wei frisa que ensinar História da China não é sinónimo de apelo ao patriotismo. Vinca que o último implica que haja uma agenda política e acredita que maioria dos professores se limita a ensinar a matéria sem juízos de valor. “O ensino da História pode no entanto conduzir a um certo patriotismo porque os alunos aprendem que a China sofreu muito com as invasões estrangeiras. Não tem necessariamente de haver uma relação entre ambos mas um pode levar ao outro”, assume.
O académico, especialista em História da China e dos Estados Unidos, garante que o princípio que impera na educação superior é o de que os professores não devem transmitir opiniões e, com base no que conhece, a Educação Patriótica não é obrigatória no Continente, sendo que algumas escolas têm atividades e cursos de patriotismo. “Entende-se que a educação não se esgota no conhecimento, mas também inclui a transmissão de valores e responsabilidades sobre a Nação e o mundo”, justifica.
Rejeita associar atividades como o hastear da bandeira e cantar o hino a educação patriótica, e recorda que são práticas generalizadas. “Sei que em muitas escolas nos Estados Unidos, os alunos também têm de estar de pé e pôr a mão ao peito sempre que há um hastear a bandeira e se canta o hino. Pode chamar-se a isso educação patriótica? Exigir que um cidadão respeite os símbolos da Nação é uma questão de senso comum. Educação patriótica é quando há uma disciplina obrigatória cujos conteúdos são sobre patriotismo”, afirma.
Uma ideia partilhada por Gary Chao, que realça que qualquer país quer que os habitantes “amem” o sítio onde vivem. “No entanto, e ao contrário de outros, a Nação chinesa tem mais de cinco mil anos de cultura e história. Sem a unidade do país, é difícil que as famílias sejam sustentáveis. Portanto, acho que a cultura chinesa acaba por herdar um gene patriótico e é por isso que dura há milhares de anos, o que pode não ser entendido por outras nações e etnias”, refere o presidente da New Macau Youth Association.
De pequenino é que se torce o pepino
A Direção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) esclarece que a educação patriótica não é uma disciplina independente, e está integrada em diferentes disciplinas como a de História.
Em resposta ao PLATAFORMA, organismo realça que o Governo “tem dado grande importância à educação sobre os assuntos nacionais”. “Entre os objectivos educativos, do ensino primário ao ensino secundário complementar, definiu-se, claramente, fortalecer a consciência nacional e universalista dos alunos, sensibilizando-os para o desenvolvimento da Pátria e de Macau, e a formar uma consciência cívica”, realça a DSEJ.
Há atividades, cursos de formação e algumas escolas seguem o manual “Virtude e Cidadania”, editado pelo Ministério da Educação da República Popular da China.
A DSEJ garante que a autonomia das escolas é respeitada. “Todas podem desenvolver os seus próprios currículos e escolher os materiais didácticos de acordo com os seus princípios e características”, salienta.
Entre outros apoios, o organismo diz que concede subsídios para visitas de estudo ao Continente, “a fim de incentivar os docentes e alunos a aprenderem a cultura e história da nação chinesa, e testemunharem os desenvolvimentos mais recentes do país”.
Questionados sobre o orçamento anual destinado à educação patriótica, o organismo explica não ter dados porque não é uma cadeira independente, mas refere que gastou cerca de 16 milhões de patacas na organização de atividades letivas dedicadas à cultura chinesa nos anos letivos 2016/2017 e 2017/2018.
Desde 1 de junho que todas as escolas de ensino primário e secundário são obrigadas a realizar a cerimónia do hastear da bandeira uma vez por semana.
Na altura, a DSEJ disse que iria dar apoio às escolas que alegassem não reunir as “condições necessárias”, através por exemplo de recursos pedagógicos, nas versões chinesa, portuguesa e inglesa.
Hong Kong volta à carga
Em Hong Kong, a educação patriótica voltou a ser tema de debate com o Governo de Carrie Lam mas a controvérsia começa muito antes da atual Chefe do Executivo ser eleita. A ideia de “aprender sobre a identidade nacional e contribuir para o País” foi apresentada como um objetivo para a educação num relatório de um organismo consultivo do Executivo em 2001. No ano seguinte, saíam as linhas gerais para as escolas que pela primeira vez referiam que se devia promover a identidade nacional como um dos cinco principais valores dos alunos.
Seis anos mais tarde, Hu Jintao, presidente na altura, e na cerimónia dos 10 anos desde a transição, dizia que a educação patriótica devia ter mais importância na cidade. “Tenho algo especial para dizer sobre os jovens de Hong Kong porque são o futuro da cidade, de certo, e da China. Devemos promover um sentido mais forte de identidade nacional nos jovens de Hong Kong para que deem continuidade à grande tradição da população de Hong Kong de ‘amar a Mãe Pátria e a amar Hong Kong’”, realçava.
Três meses depois Donald Tsang, então líder do Governo da região, prometia que a educação patriótica teria mais peso nos currículos, que iria encorajar as escolas a aumentar as cerimónias de hastear da bandeira e atribuir mais subsídios para as viagens de estudo ao Continente.
Em 2010, Tsang anuncia que quer implementar educação patriótica e moral como uma disciplina isolada.
Já na era de CY Leung, o assunto voltou à polémica desta feita porque o Governo confirma que, durante cerca de seis anos, teria gastado pelo menos 72 milhões de dólares de Hong Kong de fundos públicos em material “tendencioso” – acusavam alguns – de educação patriótica, elaborado por duas empresas lideradas por um académico próximo de Pequim.
Entre outras referências, as diretrizes para os professores diziam que os “sistemas multi-partidários poderiam vitimizar as pessoas, enquanto sistemas de poder concentrado criavam Governos altruístas que traziam estabilidade”.
Em julho, milhares de pessoas saíram em protesto durante 10 dias. A maratona fez com que CY Leung recuasse e prometesse que a educação patriótica não seria obrigatória no seu mandato.
O assunto voltava ao debate com Carrie Lam. Assim que é eleita, promete fazer da educação patriótica uma prioridade. Antes, já tinha manifestado a intenção de implementar um programa chamado “Sou Chinês” que teria início logo no ensino infantil.
Não são os meios, são os fins
Enquanto lecionou na Universidade de Macau, George Wei assegura que abordava todos os temas. “Sim, ensinamos e falamos de Tiananmen. Não estou certo sobre a prática no Continente, mas nas minhas aulas sempre mencionei o acontecimento. Para minha surpresa, todos os meus estudantes apoiavam a decisão do Governo central e consideravam que os protestos tinham sido ingénuos. Não era o que ensinava, era o pensamento e opinião deles”, diz o académico, agora na Beijing Normal University-Hong Kong Baptist University United International College, em Zhuhai.
Em Hong Kong o tema não é pacífico. Jason Ng assume que seria normal aprender sobre a China em Hong Kong, se não houvesse uma questão política. “Mas não é assim”, frisa o advogado e presidente do Grupo de Advogados Progressistas.
“Tendo em conta a dinâmica atual entre os cidadãos e o Governo, há muita pouca fé que um currículo como o da educação patriótica fosse equilibrado e imparcial”, sublinha. “A preocupação de que seja um meio de propaganda para inculcar nos nossos jovens uma lealdade cega ao Partido Comunista [Chinês] é demasiado grande para que qualquer debate sobre educação patriótica possa recomeçar”, defende o antigo presidente da PEN Hong Kong.
O escritor e ativista pró-democracia tornou-se best-seller com “Hong Kong State of Mind” (2010), “No City for Slow Men” (2013), e “Umbrella in Bloom” (2016), uma trilogia sobre o período pós-colonial, o último sobre o Movimento dos Guarda-Chuvas, protesto que celebrizou Joshua Wong, já antes conhecido por ser um dos líderes das manifestações contra a educação patriótica, em 2012 (Ver caixa 2).
“Saímos à rua porque sentimos que não havia necessidade de haver uma disciplina independente já que sempre ensinámos conteúdos relacionados com a China, porque os currículos para essa disciplina pareciam ser mais doutrinários, e porque nos opomos a essa abordagem”, recorda o deputado do Conselho Legislativo de Hong Kong eleito indiretamente pelo setor da Educação, Ip Kin-yuen.
Para o também vice-presidente do Sindicato Profissional dos Professores de Hong Kong não há dúvida de que aprender sobre a China é crucial, mas “de uma forma aberta e com diferentes perspetivas que conduzam a um pensamento crítico”.
O professor vinca que os currículos já incluem História, Literatura chinesas e Mandarim, que muitos residentes que nasceram na cidade são filhos de uma geração migrante, e que há cada vez mais visitas de estudo, intercâmbios e estágios no Continente. Ou seja, a relação com o País é forte. Mas e sobre a educação patriótica, ressalva, há problemas. “Podemos estar a falar de formação que só enfatiza as partes boas do país. É por isso que é um assunto sensível.”
Jason Ng explica a rejeição à cultura e história da China com a falta de confiança face à erosão gradual das liberdades e direitos em Hong Kong. O rapto dos livreiros, a desconsideração dos deputados pró-democracia e a recusa ao direito ao sufrágio universal, enumera, foram alguns dos momentos que fragilizaram a relação com Pequim. “Sem confiança, não há forma de abraçar o Continente independentemente da proximidade histórica, cultural e geográfica”, reforça.
George Wei realça os tempos difíceis que se vivem em Hong Kong, mas não acredita que afetem o relacionamento. “Um filho comete erros e porta-se mal, e os pais são pacientes e esperam até que aprenda com os erros.”
Não esconde que “muitas pessoas” no Continente estão tristes com o que se está a passar na região, nos quais se inclui. “Antes destes protestos, via Hong Kong como um dos melhores exemplos do mundo moderno, qualidades que estão a ser arruinadas por esses radicais. Pensava que Hong Kong podia ser um modelo que outras cidades na China seguissem. Agora é completamente diferente”, assume.
De volta a 2012, o historiador diz que se confundiu educação patriótica com o ensino da História. “Algumas pessoas temiam que ensinar a História da China levaria ao desaparecimento do princípio Um País, Dois Sistemas. Pensavam que Pequim e o Governo central iriam usar a disciplina para conseguir o total controlo político, e que fizesse com que a cidade perdesse o sistema e estatuto próprios”, frisa.
Conhecer o passado e percurso de um país, acrescenta, é fundamental. “De onde vêm os valores, forças, raízes? Do passado. É por isso que acho que as pessoas, especialmente os estudantes, exageraram na reação contra o Governo. Em qualquer parte do mundo, se ensina sobre a História da Nação. É uma parte estrutural do ensino”, reitera.
Ng insiste que a disciplina de “Estudos Liberais”, que existe nas escolas em Hong Kong, chega. “O objetivo principal é o de assegurar que ‘todos os estudantes desenvolvem um entendimento de assuntos de maior relevância que aconteceram na nossa sociedade no século XXI e que têm ferramentas que lhes permitam ter um pensamento crítico e fazer um juízo informado sobre os temas”, afirma.
Um dos tópicos principais é a China Moderna que, realça o escritor, inclui temas como a Reforma e Abertura da China, a Cultura Chinesa e Vida Moderna. “Não há necessidade de se criar uma disciplina independente com o nome de Educação Patriótica”, remata.
UM estreou-se
Pela primeira vez na história da Universidade de Macau (UM) foi organizada um hastear da bandeira protagonizada pelos alunos. No site da universidade, está o vídeo da cerimónia acompanhado de um texto que refere que a UM foi a primeira universidade pública a fazê-lo. Aconteceu a 26 de maio, aquando da cerimónia de graduação.
No texto, a instituição realça que mais de 800 membros da faculdade e estudantes estiveram no evento, e que os alunos afirmaram que a cerimónia aumentou o seu sentido de pertença à China.
Os 21 alunos que participaram receberam treino da Guarnição em Macau do Exercito de Libertação do Povo Chinês. MC Ouyang, presidente da associação de estudantes da UM, foi o porta-estandarte. Citado no texto, dizia sentir-se honrado, que a cerimónia aumentou o sentido de pertença à China, e contribuiu para o reforço do amor pelo país e identidade nacional.
No mesmo texto, a universidade garante que vai continuar a organizar eventos similares em dias importantes, como o da graduação, de abertura do ano letivo e da RAEM.
Do outro lado
A educação patriótica também foi tema na abertura do ano letivo, com o programa Xinwen Lianbo a dar-lhe destaque na edição da semana passada. O programa diário, produzido pela cadeia oficial CCTV, é transmitido em simultâneo por todas as televisões do Continente. Longe de ser consensual, é alvo frequente de críticas de falta de imparcialidade e de ser um meio de propaganda do Partido Comunista chinês.
A 15 de setembro, o programa incluiu uma reportagem sobre como os estudantes contribuíam para o desenvolvimento do país. Entrevistavam alunos de diferentes universidades, como da Central China Normal University, que tinham escrito uma carta sobre o que pensavam do futuro da China.
Um dos entrevistados afirmava que, enquanto escrevia, se tinha apercebido de como podia contribuir e construir uma China melhor.
A reportagem mostrava ainda imagens da cerimónia do início do ano letivo da Nankai University, na qual o reitor perguntava aos alunos: “São chineses?”, “Amam a China”, e “Querem ver uma China melhor?”, a que os estudantes responderam em uníssono e com igual convicção “Sim. Esperamos que a nossa Mãe Pátria seja próspera e forte”. Em muitas escolas do país, o primeiro dia do ano letivo é dedicado a atividades patrióticas.
Catarina Brites Soares 27.09.2019