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Rio de Janeiro: um retrato da violência e desigualdade

Setembro no Rio de Janeiro foi um mês em que foi visível a divisão em que vive o Brasil. A “cidade-maravilha” foi palco de um megaevento de música (Rock in Rio) e de confrontos entre as autoridades e grupos criminais na Rocinha, símbolo das favelas brasileiras, onde moram perto de cem mil pessoas. 

Vivendo realidades opostas, os que estavam na cidade do Rock aplaudiam a música, luzes, segurança e uma tranquilidade que só era quebrada pelos aplausos entusiasmados a bandas globais como os Aerosmith, Guns N’ Roses e Bon Jovi. Já os moradores da Rocinha escondiam-se nas casas temendo a aproximação do som metálico das balas, disparadas por traficantes que lutavam contra os militares e polícias que cercavam o local.

No festival, Ana Barros, 51 anos, era uma das melómanas que preferia ignorar os confrontos a poucos quilómetros. “No Rio de Janeiro vivemos numa outra esfera. Sempre achamos que a violência vai acontecer com o outro, não com a gente. Assim pensam todos os cariocas, somos muito tranquilos”, disse à Lusa. Na Rocinha, um dirigente anónimo da associação de moradores afirmou que os residentes ainda têm muito medo porque não sabem o que vai acontecer no futuro. “As forças armadas vieram para proteger a comunidade, mas eles vão embora e a gente não sabe o que vai acontecer. A realidade é essa. As pessoas estão com medo, chegam do trabalho vão direto para casa”, relatou.

Políticas de segurança em crise

O momento delicado do Rio de Janeiro, que nos últimos anos recebeu investimentos milionários para acolher eventos internacionais como os Jogos Olímpicos de 2016 e a final do Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, também é um sinal de que a cidade continua a ser o reflexo mais evidente da desigualdade económica que cresce no Brasil.

Estado que concentra o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) do país sul-americano, o Rio de Janeiro e sua capital mergulharam numa grave crise fiscal em 2015, com a redução brutal das receitas da indústria petrolífera, causada pela desvalorização mundial do preço do barril de petróleo e pelos escândalos de corrupção na estatal Petrobras. A situação ficou mais grave quando os reflexos da recessão do Brasil atingiram também o estado, desencadeando uma tempestade perfeita que levou o Rio de Janeiro a decretar calamidade financeira em 2016. De mãos dadas com a crise financeira renasceu a violência urbana.

Para João Trajano Sento-Sé, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a economia enfraquecida é o primeiro dos três fatores a serem destacados para explicar o aumento dos conflitos armados na cidade que acabaram com um pedido de ajuda ao exército. “A crise fiscal pela qual o Rio de Janeiro tem passado está comprometendo duramente a capacidade do estado de dar conta de suas atribuições e responsabilidades em diferentes campos. A segurança pública acabou sendo prejudicada”, disse.

O segundo fator é a redução do policiamento intensivo nas favelas do Rio de Janeiro, que começou com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), em 2008, dentro de um programa que previa patrulhamento, implantação de infraestruturas e serviços sociais. “O programa das UPP trouxe muitos elementos interessantes, criativos e promissores para abordagem da segurança pública. Houve um deslocamento do combate às drogas para o combate às armas”, mas “isto não foi feito da forma mais adequada”, explicou João Trajano Sento-Sé. 

“Com a crise fiscal, a capacidade e investimento do estado nas UPP foi se depreciando. O programa não tinha como se manter tal como foi implantado porque é uma iniciativa muito onerosa e implica a mobilização de recursos estruturais e humanos em larga escala”, salientou. A isso se somou a pressão eleitoral num país que está em permanente tensão político-partidária. “Quando perceberam seu potencial eleitoral também houve uma expansão desmedida das UPP sem planeamento e sem as outras políticas sociais que deveriam vir junto com o programa. Os grupos ligados ao comércio de drogas perceberam isto e começaram um movimento de reconquista do controlo das favelas”, completou.

No caso da Rocinha, a disputa é interna. Um traficante chamado Antônio Francisco Bonfim Lopes, preso desde 2011, terá sido traído por um antigo subordinando da organização criminosas Amigos dos Amigos (A.D.A), Rogério Avelino da Silva, que passou a comandar a venda de drogas no local sem repartir lucro com o antigo chefe. A rivalidade entre criminosos desencadeou uma série de conflitos até à intervenção militar na zona.

Com isto, explicou João Sento-Sé, surgiu o terceiro fator: o caos da segurança pública e a reconfiguração do sistema criminal. Na avaliação de João Trajano Sento-Sé, as diferentes organizações que existem no estado enfraqueceram-se com a prisão de chefes e a chegada das UPP. Assim, as áreas que essas redes controlavam tornaram-se objeto de disputa. “Na ausência de uma estratégia alternativa como foi a [das] UPP houve a retoma da velha estratégia das incursões armadas e a velha retórica da guerra contra as drogas. Este terceiro elemento compõem o ‘cocktail’ desastroso que culminou no recrudescimento dos conflitos [no Rio de Janeiro], nesta guerra entre grupos armados do tráfico e entre a polícia e os criminosos”, avaliou.

Negros, pobres e invisíveis

O pesquisador Pablo Nunes do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) também salientou que a violência viveu um período de queda no Rio de Janeiro entre os anos de 2011 e 2013, mas situação da segurança pública voltou a deteriorar-se com o enfraquecimento das UPP. No caso da Rocinha, o investigador lembrou o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, em 2013, visto pela última vez sendo levado de casa para dentro de uma UPP por policias. 

O desaparecimento de Amarildo tornou-se num símbolo da violência policial naquela comunidade e aumentou a desconfiança dos moradores em relação as autoridades de segurança, abrindo falhas de confiança que foram aproveitadas pelos criminosos.

“Quem estão morrendo são os jovens negros e pobres, assim, é muito fácil você naturalizar uma violência que não lhe atinge diretamente. As pessoas [de classe média] têm medo, mas a violência não as atinge todos os dias”, destacou. Sobre a aparente passividade dos moradores das comunidades perante a ação violenta dos criminosos, Pablo Nunes concluiu que “a população queria não ter que conviver com os traficantes, mas, por outro lado, também tem um medo terrível da polícia e, diante deste quadro, permanece quieta para sobreviver”.  

Carolina de Ré-Exclusivo Lusa/Plataforma Macau

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