O Comité dos Negócios Estrangeiros da Câmara dos Comuns do Reino Unido publicou no dia 4 de setembro um relatório apontando que a decisão do primeiro-ministro David Cameron em 2011 de executar uma intervenção militar na guerra civil da Líbia foi feita com base em informações erróneas, tendo depois acelerado o colapso da Líbia em termos políticos e económicos.
Segundo o relatório, a decisão de intervir militarmente na Líbia foi baseada em avaliações sensacionalistas, e não em análises objetivas e sóbrias. Ao mesmo tempo, não existiu uma compreensão completa da situação na Líbia, sendo que o governo britânico não reconheceu na altura que as informações sobre a ameaça aos cidadãos líbios eram parcialmente exageradas, e também não identificou as tendências extremistas dentro da oposição líbia.
Crispin Blunt, presidente do Comité dos Negócios Estrangeiros da Câmara dos Comuns do Reino Unido, afirmou: “O governo de Cameron forneceu aos decisores políticos uma série de avaliações exageradas, prevendo uma possível situação futura em Bengasi, e exigindo por isso uma tomada de ação. A decisão de intervir militarmente na Líbia nasceu destas circunstâncias, e não foi feita com base em análises objetivas e sóbrias da situação, não tendo também havido uma reflexão para determinar qual o caminho certo a seguir.”
O relatório alega que a intervenção militar dos Estados Unidos, Reino Unido, França e outros países deixou a Líbia numa situação de caos durante vários anos, situação que causou o crescimento do extremismo e cujas consequências até hoje ainda se fazem sentir no país. O relatório afirma também que o então primeiro-ministro David Cameron desempenhou um papel determinante na decisão de intervir militarmente na Líbia e é, em última análise, responsável pelas suas consequências.
Em fevereiro de 2011, a situação caótica na Líbia transformou-se numa guerra civil. Em março do mesmo ano, os Estados Unidos, Reino Unido, França e outros países enviaram aviões de combate e navios de guerra para um ataque militar ao regime de Kadhafi. Com a ajuda da intervenção militar dos Estados Unidos e de outros países da NATO, a então oposição Líbia conseguiu derrubar o regime de Kadhafi. Contudo, após a guerra civil, a Líbia encontrava-se extremamente devastada, com várias fações armadas a tirar partido da situação para assumirem controlo. A proliferação de armas entre a população e a ausência de liderança causada pelos conflitos entre fações forneceram terreno fértil para o terrorismo e extremismo no país. Nos últimos anos, os grupos extremistas tomaram partido da situação na Líbia para se expandirem, dando eventualmente origem ao “Estado Islâmico” (ISIS). Bengasi, Trípoli e outras importantes cidades estão sob perigo constante, e o combate aos grupos extremistas e ao ISIS já se tornou num dos problemas mais difíceis enfrentados pela Líbia.
Relativamente à desordem causada pela intervenção militar dos Estados Unidos e outros países da NATO, o presidente norte-americano Barack Obama disse em abril deste ano que o maior erro dos seus dois mandatos foi a falta de orientação para as ações tomadas no seguimento da intervenção militar. O presidente admitiu que a Líbia após a queda de Kadhafi entrou em estado de “caos”, mas insiste ainda que a decisão de intervir na Líbia foi correta.
Em entrevista à revista The Atlantic, Obama referiu: “Na realidade, executámos o plano muito bem, tal e qual como era esperado. Tivemos um mandato da ONU, criámos forças de coligação, isso custou-nos mil milhões de dólares, o que, no que diz respeito a operações militares, é muito pouco. Evitámos baixas civis de larga escala, prevenimos o que quase certamente teria sido um conflito civil prolongado e sangrento. E, apesar de tudo isso, a Líbia é atualmente um caos.” Nesta ocasião, Obama apontou diretamente o dedo a Cameron, afirmando que o ex-primeiro-ministro “se distraiu com outras coisas”, desviando a sua atenção da Líbia.
O artigo da The Atlantic menciona outro termo mais vívido usado por Obama em privado para descrever o caos na Líbia: “shit show”.
O uso por parte de Obama, como atual presidente dos Estados Unidos, deste tipo de linguagem para acusar o primeiro-ministro britânico é efetivamente algo de inédito. O jornal britânico The Independent disse ainda que estes comentários de Obama eram sem dúvida uma “séria humilhação” para Cameron.
Embora Obama tenha dito (de forma minimizante) que o procedimento da intervenção militar norte-americana se tratou de um “erro”, o facto de atirar as culpas da situação líbia para Cameron, usando ainda expressões que serão humilhantes para o ex-primeiro-ministro, deve-se, acredito eu, à aproximação do final dos seus oito anos de presidência, trazendo por isso às suas palavras uma ousada incisividade.
DAVID Chan