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O protocolo da OMC não é negociável

Passam em Dezembro 15 anos desde que a China passou a integrar a Organização Mundial do Comércio (OMC), expirando a validade dos  termos com que os produtos do país são recebidos pelos seus parceiros comerciais. O final do ano não trará à China o reconhecimento de economia de mercado. Mas, a União Europeia estará a ganhar tempo numa tomada de posição que não hostilize o país, defende Jing Men, diretora do Centro China-União Europeia do College of Europe, em Bruxelas.

– No início deste ano, poderia haver a impressão de que a Comissão Europeia estaria inclinada a reconhecer à China o estatuto de economia de mercado. Agora sabemos que isso não vai acontecer e vemos a Comissão a discutir antes a questão da metodologia a adoptar em novos processos de investigação por dumping perante o expirar dos termos do protocolo de adesão da China à Organização Mundial de Comércio (OMC). O que mudou?

– Jing Men – Não creio que a Comissão Europeia estivesse disponível para reconhecer a China como economia de mercado, mesmo no início deste ano. As pessoas talvez tenham tido a impressão errada julgando que a Comissão Europeia estava preparada para fazê-lo, mas não creio que o tenha estado alguma vez. É uma história muito complicada. Há alguns anos, quando Karel de Gucht era ainda comissário [do Comércio], este discursou no Parlamento [Europeu], afirmando que em 2016 a China teria o estatuto de economia de mercado. Mas a atual comissária [Cecilia Malmström] nunca disse nada de parecido.

– Não houve outro tipo de reconfiguração política no quadro da União Europeia a alterar este cenário? Os membros do Parlamento Europeu tomaram uma posição forte contra a possibilidade em Maio. 

– J.M. – É algo de muito complicado. A questão do estatuto de economia de mercado é uma questão política. Trata-se do tratamento das importações chinesas na Europeia em casos de investigações anti-dumping, de saber que preço é tido em consideração [como referência, na avaliação dos preços de entrada no mercado dos produtos chineses] na investigação das margens anti-dumping – se vai ter-se em conta os preços dos produtos no mercado chinês ou os preços de produtos similares feitos noutros países. Esta é a questão da metodologia. O comissário europeu anterior tinha um entendimento muito mais simples do protocolo da Organização Mundial do Comércio que a China assinou em 2001, tendo sido por isso que afirmou que em 2016 a China teria o estatuto de economia de mercado. Mas, sobretudo nos últimos dois a três anos, muitos juristas da Europa e dos Estados Unidos começaram a declarar com alguma ênfase que o período de transição da China, de 15 anos, não seria suficiente, e que lendo cuidadosamente o protocolo se percebe que a China não deve ver reconhecido o estatuto de economia de mercado automaticamente. Há algumas armadilhas, sobretudo no que diz respeito ao artigo 15º [comparação de preços na determinação sobre subsídios e dumping]. Cada vez mais pessoas aceitam que não é claro que a China deveria ter reconhecimento automático do estatuto. Este é, afinal, um debate entre diferentes interpretações da lei. Mas, por outro lado, não é um mero debate jurídico, porque há diferentes interesses económicos envolvidos. Se a economia chinesa estivesse a crescer de forma saudável, se o PIB chinês mantivesse pelo menos o crescimento anual de 7 por cento, talvez as pessoas não se queixassem tanto. Mas nos últimos dois anos a economia chinesa tem vindo gradualmente a enfrentar dificuldades, com problemas de excesso de capacidade em sectores como o aço. Isso é um problema na União Europeia, com protestos dos trabalhadores europeus. Acaba então por ser um questão económica. Na Europa, pensa-se agora  que é um problema que os produtos chineses entrem no mercado europeu sem que haja meios de acionar medidas anti-dumping. As posições mais fortes vêm do lobby do aço, ainda que haja diferentes interpretações jurídicas. Politicamente, esta também é uma questão muito sensível. Se a UE disser abertamente que não reconhece o estatuto de economia de mercado, as relações com a China serão prejudicadas.

– Como está a China a reagir?

J.M. – O entendimento é o de que os 15 anos são um período de transição no termo do qual a China deve ser alvo do mesmo tratamento que os restantes membros da Organização Mundial do Comércio. De contrário, o tratamento é injusto. Do ponto de vista económico, político e legal, esta questão envolve diferentes aspectos e não é tão simples assim. Em todo o caso, no que respeita à metodologia, a China parece ter agora concordado que é possível deixar cair a expressão ‘estatuto de economia de mercado’. Mas é necessário que o artigo 15º não seja visto como um problema e que, após 11 de Dezembro, havendo casos anti-dumping, sejam tidos em conta os preços dos produtos na China em vez de preços análogos de outros países. A argumentação mudou, passando de uma discussão sobre se a China deve ver reconhecido o estatuto para outra em que se trata de saber se, em casos anti-dumping, os preços devem analisados na base dos preços praticados na China.

– A posição final poderá ser a de reconhecer o estatuto de economia de mercado para a China sem ter de o fazer, em termos do tratamento previsto no protocolo?

J.M. – Esse é o aspecto interessante. Ambas as partes concordam em que se abandone a expressão, ainda que, como refere, a essência deste estatuto resida no tratamento em investigações de margens anti-dumping, sendo central a questão da metodologia. Mas, naturalmente, a China espera que o artigo 15º seja interpretado num entendimento em que a União Europeia aceite os preços chineses. Mas a UE poderá não o fazer. Após 11 de Dezembro, esse poderá não ser o caso. O Parlamento Europeu enviou um sinal muito forte à Comissão Europeia, mostrando desagrado com a hipótese. Se a União Europeia quiser mudar a metodologia, a Comissão Europeia terá de apresentar uma proposta e aguardar por uma decisão do Parlamento e do Conselho Europeu. Muitos em Bruxelas dizem agora que é cada vez mais claro que não haverá qualquer política aprovada pelo Parlamento Europeu e Conselho Europeu antes do final do prazo, 11 de Dezembro.

– A direção da Organização Mundial do Comércio fez entretanto declarações que permitem inferir que não será favorável a uma nova metodologia por parte da União Europeia, afirmando que o protocolo deve ser aplicado de forma igual a todos os membros. O que é que isto significa?

J.M. – O problema está em que, neste momento, independentemente das interpretações do protocolo, será necessário esperar para ver o que acontece depois de Dezembro. Em primeiro lugar, há que ver se há uma revisão de política por parte da União Europeia relativamente ao tratamento das importações chinesas. Caso esta não exista, teremos de esperar para ver se após 11 de Dezembro há alguma investigação em curso a produtos chineses. Se não houver, não poderemos saber quais os preços que serão tidos como referência. Sem um investigação aberta, ainda que a União Europeia não mude de posição, a China não poderá queixar-se perante o mecanismo de resolução de disputas da Organização Mundial do Comércio. É por isso que é necessário aguardar. Só um novo caso trará uma nova metodologia. No entender da Organização Mundial de Comércio é possível antecipar que a China ganhe o caso,  ao considerar que a União Europeia tem de seguir o protocolo. Ainda assim, um caso destes demora dois a três anos a ser concluído. E aquilo de que a União Europeia precisa é de tempo, sabendo desde já que não estará preparada até Dezembro. Mas talvez já o esteja dentro de dois a três anos, havendo nessa altura uma nova dinâmica nas relações UE-China com novas possibilidades de se resolverem disputas. É até engraçado, diria, assistir àquelas que são as expectativas da China e aos debates internos dentro da União Europeia. Tudo demora algum tempo.

– A referência a preços dos Estados Unidos é vista como um dos problemas. Poderá haver outro sistema de referência mais em linha com as expectativas chinesas?

J.M.– É muito difícil dizer para cada produto quais as referências possíveis caso não se tenha como referência preços na China. É imprevisível e difícil. Tem também que ver com a disponibilidade de preços dos produtos nesses países.

– Há entretanto notícias sobre a possibilidade de a União Europeia abrir novos procedimentos de investigação sobre matérias-primas importadas da China. Poderão ser tratadas sob um novo entendimento do protocolo?

J.M. –  Há muitas incertezas. Os comissários [da União Europeia] têm a vida bastante dificultada.

– O voto no referendo do Reino Unido para a saída da União Europeia mudou alguma coisa na posição comercial do grupo relativamente à China?

J.M. – É demasiado cedo para dizer. É preciso perceber o que é que o Reino Unido quer efetivamente, porque não é claro que a decisão esteja tomada.

– Há também um cenário de incerteza perante as eleições presidenciais dos Estados Unidos, e sobre o que este país procurará na Organização Mundial do Comércio no caso de vitória do candidato do Partido Republicano. A Organização Mundial do Comércio fica mais vulnerável?

J.M. – Há, como disse, muita incerteza, e é necessário ver como cada ‘jogador’ se vai comportar após Dezembro. Por enquanto, a China tem muitas expectativas em relação à Organização Mundial do Comércio e espera que esta contribua para a resolução dos problemas. Mas não sabemos como será o mundo no próximo ano. Há demasiada incerteza.

– Qual será o pior cenário possível do ponto de vista chinês para o comércio do país, no que diz respeito ao Brexit e às eleições presidenciais dos Estados Unidos?

J.M. – Tudo tem dois lados. Diria que o Brexit não afectará dramaticamente o comércio chinês porque está em causa apenas um país do grupo de 28 da União Europeia. E, claro, após a saída, a forma como o Reino Unido conduzirá a sua política comercial e as suas relações económicas quer com a União Europeia, quer com os restantes blocos, está em aberto. Quanto à possível eleição de Donald Trump, ainda que muitas pessoas tenham opiniões negativas sobre o candidato, se os eleitores o escolherem é porque há uma razão para isso. A China terá de lidar com a realidade e fazer políticas vis-à-vis aquele que será o Presidente. Naturalmente, a China sabe melhor o que esperar de Hillary [Clinton]. Donald Trump é tão imprevisível quanto a atual situação. 

– Voltando ao protocolo da Organização Mundial do Comércio e presentes discussões, estas poderão ser prejudiciais às negociações do tratado de investimento bilateral entre China e União Europeia? O processo encontra-se já estagnado.

J.M. – Não entendo que possa ser prejudicial.  A China tem acordos bilaterais de investimento com os Estados-membros da União Europeia – com exceção da Irlanda. O que está a ser negociado é um acordo global que, ao ficar concluído, fará expirar os acordos individuais. Mas estes ainda são válidos. Um acordo global será mais claro e atualizado. Mas nas negociações não houve ainda acordo sobre que itens devem estar na mesa e sobre como se vai lidar com as diferenças. Para já, não há optimismo de que o tratado seja concluído de forma rápida. Levará algum tempo. 

– As questões comerciais terão algum impacto na discussão sobre o investimento?

J.M. – Não creio que tenham. São questões separadas. Para a China, o protocolo da Organização Mundial do Comércio não é negociável. Daí que a União Europeia não possa retirar vantagens deste processo noutros âmbitos. No tratado de investimento cada parte tem interesses próprios. Não havendo acordo, limitam-se a desistir da negociação. 

– Para concluir, na interpretação do protocolo de adesão da Organização Mundial do Comércio, aquilo que podemos esperar após 11 de Dezembro deste ano é que tudo fique, na verdade, na mesma? Expirando os termos do protocolo e sem uma investigação anti-dumping, não saberemos qual a posição da União Europeia.

J.M. – Sim. Teremos de esperar pelo primeiro caso após 11 de Dezembro para saber quais as metodologias que serão utilizadas e qual a reação da China. Por outro lado, a União Europeia admitiu neste processo ter tido uma grande coordenação com os Estados Unidos, e não tanto com a China.

– Os negócios chineses de exportação podem viver com esta indefinição?

J.M. – Que mais podem fazer? Estão nas mãos dos outros. 

Maria Caetano

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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