Depois da extinção das câmaras de Macau e das Ilhas, em 2001, o Governo anunciou, no ano passado, a intenção de criar um órgão municipal sem poder político em 2019, mas tanto então como agora, quase nada se sabe sobre a sua missão ou método de eleição.
A proposta já tinha sido feita em 2012 pela então secretária para a Administração e Justiça, Florinda Chan, mas foi já em 2015 que o chefe do Governo, Chui Sai On, anunciou, entre as medidas destinadas a “elevar o nível da governação”, o lançamento de um estudo e a criação de um grupo de trabalho para dar seguimento à matéria.
De acordo com o calendário da administração, vai ser lançada uma consulta pública até ao final deste ano. Em 2018, deverá estar concluída uma proposta das competências, estrutura e constituição do futuro órgão municipal, que será criado em 2019, antes da próxima eleição do chefe do Executivo.
A escolha do líder de Macau é o primeiro argumento usado pela Direção dos Serviços de Administração e Função Pública (SAFP) para justificar a criação do novo órgão, porque, segundo resposta à agência Lusa, a inexistência de membros de órgãos municipais na comissão que o elege “suscitou atenção da sociedade”.
A justificação colhe a opinião favorável do professor da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST) Zhu Shihai, para quem “a Lei Básica prevê que representantes dos membros dos órgãos municipais integrem a comissão para eleger o chefe do Executivo, mas não há órgãos municipais”.
Já o especialista em Direito Constitucional António Katchi considera que “não é por aí que se pode sustentar a necessidade jurídica de haver órgãos municipais”, porque o artigo da Lei Básica que fala da composição da comissão eleitoral para a seleção do chefe do Executivo não refere a obrigatoriedade dos mesmos.
O docente do Instituto Politécnico de Macau (IPM) vai mais longe e afirma que “ao usar este argumento para justificar a restauração de órgãos municipais, o Governo estaria a assumir que afinal errou anteriormente, quando disse que não era preciso esses órgãos existirem”.
Katchi defende que, “tal como estava previsto na Lei Básica, não havia necessidade de extinguir os municípios”, após a transferência da administração de Macau de Portugal para a China, em 1999, e dá o exemplo de Hong Kong, onde os ‘district councils’ não só não foram extintos, como continuaram a ser parcialmente eleitos por sufrágio universal.
Por outro lado, fala em “discussões mantidas em segredo” antes da apresentação pelo Governo da proposta de lei para a eliminação destes órgãos e substituição pelo Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), com um conselho de administração integralmente nomeado pelo Executivo.
“De repente veio como uma decisão já final, tomada pelo Governo, e que a Assembleia Legislativa apenas devia carimbar e carimbou”, diz.
Desse período, Katchi recorda as alegações do Governo de que a eleição parcial dos órgãos municipais estaria em contradição com a Lei Básica, segundo a qual os órgãos municipais não devem ter poder político.
“O facto de serem parcialmente eleitos era (assumido como) sinónimo de terem poder político, o que é um disparate, evidentemente, porque uma coisa é o poder que o órgão tem, ou seja, quais são as suas competências, outra coisa é o modo como os seus membros são escolhidos”, salienta.
Outro argumento apresentado então para extinguir os municípios, segundo Katchi, foi a dimensão do território de Macau, que, por ser pequeno, não justificava os dois municípios e as suas atribuições podiam passar para a administração central da região.
“Só que o que foi feito foi uma trapalhada, porque criou-se o IACM para absorver grande parte das atribuições dos antigos municípios e, na verdade, passou a haver uma sobreposição ou uma falta de clareza na delimitação entre as funções do IACM e as de outros departamentos da administração pública direta de Macau”, afirma.
Hoje Macau continua a ser um território pequeno, o que leva Katchi a dizer que, do ponto de vista da gestão administrativa, não haverá necessidade de criar um novo órgão municipal. Mas a medida não lhe parece necessariamente inconveniente: “Ou seja, pode não ser necessário, mas ainda assim poderá ter algumas vantagens”, desde que haja “uma rigorosa delimitação de funções”, com respetiva “adequação dos recursos financeiros e humanos”, observa.
Indefinições e eficácia
As autoridades de Macau frisam que o novo órgão não vai ter poder político, adiantando que “deve basear-se nas competências do IACM e dos serviços competentes relacionados, com o objetivo de prestar um melhor serviço à população”. Deverá prestar serviços nos domínios da cultura, recreio, salubridade pública e dar pareceres de carácter consultivo ao Governo, referem os SAFP, citando a Lei Básica. Além disso, acrescentam que vai ser implementada uma “racionalização de quadros”, sem avançar detalhes.
No quadro das incertezas está ainda o futuro do IACM: “Se será extinto ou se será reestruturado em virtude de um melhor ordenamento das competências e estrutura são questões que serão objeto de estudo, cuja solução só será adotada depois de ter auscultado as opiniões dos diferentes setores da sociedade”, segundo a mesma Direção.
José Sales Marques, que entre 1993 e 2001 foi, primeiro, presidente do Leal Senado e, posteriormente, presidente da Câmara Municipal Provisória de Macau, até à sua extinção, diz que “só faz sentido criar um novo órgão municipal se ele tiver poder deliberativo”, e coloca a questão ao nível da eficácia.
“Os órgãos municipais devem saber resolver os problemas da população, mas de uma maneira muito direta e simples. Não vale a pena complicar”. Para o antigo autarca, o IACM pode continuar a existir: “É apenas uma máquina, um instrumento de uma boa administração de tipo municipal, o que é preciso é a ‘cabeça’, o órgão administrativo ser capaz de fazer refletir, e o IACM executar aquilo que são as verdadeiras necessidades da população”.
Zhu Shihai refere que Macau “tem uma longa tradição de organismos municipais e que as experiências indicam que estes têm mais vantagens para os cidadãos”, pelo que defende a sua recuperação, alinhada com a delimitação geográfica dos atuais três conselhos consultivos (zonas Norte, Central e Ilhas), criados em 2008. “Estes novos corpos municipais devem assumir as funções de serviços do IACM e este deve continuar a desempenhar a sua função de gestão”, acrescenta.
Participação popular
Quem nunca deixou de falar nos órgãos municipais em Macau foi a ala dos pró-democratas, sobretudo os deputados da Associação Novo Macau. Para Ng Kuok Cheong, que há duas décadas votou contra a extinção dos órgãos municipais, o novo órgão deve ter 33 membros, o mesmo número de assentos na Assembleia Legislativa, eleitos exclusivamente por sufrágio universal.
O voto direto pode até beneficiar as forças políticas pró-Governo, como sugere “a experiência de diferentes países e também de Hong Kong”, mas isso não é o mais importante: “Este órgão municipal é uma grande oportunidade para a participação política”, afirma Ng Kuok Cheong.
Independentemente dos eleitos, o deputado está convicto de que a eleição por sufrágio universal aumenta a probabilidade de defesa incondicional do bem-estar da população. “Ao virem de eleições diretas em diferentes zonas, vão insistir no benefício dos residentes. Se quiserem aumentar a sua influência política no futuro, não vão só querer agradar aos responsáveis do Governo, mas também terão de fazer algo pelos residentes. É completamente diferente das atuais comissões do Governo”, salienta.
António Katchi é da mesma opinião: “Se esse órgão tiver pessoas eleitas por sufrágio universal direto e realizar sessões públicas em que as pessoas possam participar, evidentemente aí há vantagens que têm a ver com a participação popular, com a discussão pública e com a legitimação democrática”, conclui.
Fátima Valente – Exclusivo Lusa/Plataforma