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Racismo vem ao de cima

controvérsia em torno de um anúncio publicitário de um detergente chinês é o mais recente caso de desfasamento cultural no progresso para a globalização.

Qiaobi, a marca de detergente, publicou um vídeo de um anúncio que retrata um jovem negro a ser empurrado para dentro de uma máquina de lavar. De lá de dentro sai um asiático de pele clara, o tipo de ídolo pop andrógino que representa a tendência da beleza masculina na China.

O anúncio tornou-se viral e alvo de críticas. A Leishang Cosmetics, empresa proprietária da marca, divulgou um pedido de desculpas àqueles que se possam ter sentido ofendidos.

Bastará dizer que, num país ocidental, o anúncio nunca teria sido aprovado pelo departamento de marketing, e muito menos pela plataforma de emissão.

Embora a insensibilidade racial seja revoltante, as forças subjacentes neste anúncio poderão ser muito mais complicadas. Dito de uma forma simples, pareceu um ato de ignorância em vez de malícia.

Colocando-nos no lugar do publicitário do Qiaobi, provavelmente estaríamos cheios de orgulho ao elaborar o conceito. “O nosso detergente é tão eficaz que é capaz de branquear a pele”, ou assim diria a campanha.

A maioria dos anúncios de detergente mostraria uma peça de roupa suja e a forma como ficaria limpa após uma volta na máquina de lavar.

É certo que toda a gente pôde ver que a ideia de branquear a pele foi um exagero, mas não terá sido uma forma mais divertida, e eficaz, de fazer passar a mensagem de marketing?

Não acho que o publicitário tenha equiparado o facto de se ser negro com a sujidade, pelo menos não de uma forma consciente. Durante muitos anos houve um anúncio de pasta de dentes na televisão chinesa que usava um homem negro, e mesmo a marca usava o nome Darkie. Segundo ouvi dizer, os expatriados arrepiavam-se quando viam o anúncio.

Para o bem ou para o mal, os negros como raça são usados para dramatização quando aparecem em imagens chinesas. Ainda não chegámos à etapa de sociedade daltónica.

No entanto, existe uma correlação histórica entre a pele escura e o baixo estatuto social. Nos tempos antigos, a mão-de-obra física tinha de trabalhar nos campos. Por isso, quanto mais bronzeada a pele, menos abrigo e conforto se presumia que essa pessoa teria.

Mesmo nos dias de hoje, numa era de obsessão pelo fitness, ainda ronda a piada quando um jovem na China tem a pele mais escura do que o comum.

Chen Xiaoqing, produtor da famosa série documental A Bite of China, é muitas vezes espicaçado pelos seus amigos com frases como “Pensei que tinha dado de caras com um africano” ou “Está tão escuro aqui que nem tinha reparado que estavas à minha frente”.

Caso se trate de uma mulher com pele escura, os amigos e vizinhos não irão fazer troça. Irão olhá-la com pena como se tivesse uma ligeira deformidade.

Já vi raparigas sino-americanas saudavelmente bronzeadas que regressaram à China e se defrontaram com os seus familiares chineses a reagir com horror.

Todos os cosméticos na China são concebidos para as tornar mais claras. Aposto a fortuna de um rei que um solário para mulheres seria alvo de chacota.

Na China, é mais uma questão de classes do que de raça.

Muitos chineses nunca tiveram contacto com pessoas de outras raças, particularmente negros, e poderão não conhecer a possibilidade ou forma de abordar a questão da cor da pele de forma apropriada.

Dito isto, não justificaria a discriminação racial latente que existe entre alguns dos meus compatriotas.

Há alguns anos atrás, ouvi uma história de uma escola de línguas na China que recusava contratar professores de inglês que fossem negros. Preferiam ter russos que falassem inglês com sotaque do que falantes nativos de inglês que seriam mais qualificados em todos os outros aspetos.

As autoridades da escola defenderam-se dizendo que os pais insistiam numa política de apenas professores brancos.

Outro exemplo é o cartaz chinês do novo Star Wars. O ator principal, que é negro, desapareceu misteriosamente da imagem do grupo até ser reinserido como resultado de protestos.

Quem tomou a decisão inicial poderia estar a pensar que o público chinês não seria atraído por um homem negro desconhecido, para não dizer mais.

É por isso que símbolos como o primeiro presidente americano negro e vedetas de Hollywood como Denzel Washington e Morgan Freeman são tão importantes para moldar a perceção do público. Eles ajudam a quebrar o estigma inerente em algumas partes do público chinês.

Embora a China seja também um país etnicamente diverso, a maioria das nossas minorias não têm características faciais distintas. Para alguns, apenas ao conhecer o nome nos apercebemos de que não são Han. Por isso, o nosso nível de sensibilidade racial não é tão alto como nos Estados Unidos.

Debati uma vez a questão da “yellow-face” com um dramaturgo sino-americano que é uma espécie de vigilante contra a prática antiquada de seleção de elenco.

“Sabes porque é que nós chineses não ficamos ofendidos com a yellow-face?”, perguntei-lhe. “Porque durante décadas tivemos o hábito de colocar um rosto branco para desempenhar o papel de um caucasiano. Não nos podíamos dar ao luxo de contratar atores brancos.”

Tal como as primeiras representações de asiáticos em Hollywood tinham tendência a ser caricaturas, as personagens brancas ou negras nos ecrãs chineses raramente são tridimensionais. Jogam com estereótipos exagerados.

Mais uma vez, a ignorância está no cerne do problema.

Até nos relacionarmos com um número razoável de pessoas comuns de outras raças, temos tendência a formar opiniões prematuras que são basicamente preconceitos, e, no caso de um cineasta, ele poderá reforçá-los apresentando réplicas rudes no ecrã.

Em 2011, a CNN publicou no seu site um artigo listando “a comida mais revoltante” do mundo. Grande parte era comida asiática como o ovo centenário, que é um petisco tradicional na China.

Após causar controvérsia, a CNN pediu desculpas “reservadamente por qualquer ofensa que o artigo tenha inadvertidamente causado”.

Caso tivesse identificado o artigo como “algumas comidas revoltantes aos olhos da maioria dos ocidentais” e alterado o tom de autoritário para humorístico, talvez o artigo tivesse escapado a qualquer controvérsia. Em vez disso, poderia ter sido útil, alertando alguns chineses para não servir estas especialidades locais a convidados estrangeiros.

Mas suponho que os editores se tenham esquecido que a CNN é uma operação noticiosa global e não um jornal local de Atlanta.

Da mesma forma, a Qiaobi esqueceu-se de que vivemos numa aldeia global. O seu detergente pode não ter como alvo os africanos propriamente ditos, mas também não está a ser vendido para um mercado isolado.

Por isso, deveriam ter vetado o conceito do anúncio com especialistas interculturais, ou pelo menos com alguns negros, uma vez que aqui são eles o objeto do humor inapropriado.

Lou Jing

Chinesa mestiça vítima de racismo

Tem 20 anos e um sonho: ser apresentadora de televisão. Mas bastou-lhe entrar num concurso para cantores para descobrir que o seu caminho não vai ser nada fácil.

Lou Jing, de 20 anos, vai seguir com um interesse particular a visita à China do Presidente norte-americano, Barack Obama: é um dos heróis desta mestiça chinesa de pele negra – um caso excepcional no seu país – que sofre com o racismo de uma parte dos seus compatriotas.

O pai, afro-americano, abandonou a mãe, chinesa, e Lou Jing ficou no centro de uma polémica depois de ter participado nas provas de selecção do programa de televisão Lets Go! Oriental Angel, versão chinesa do American Idol, para descobrir novos talentos da canção.

A polémica não nasceu dos talentos musicais, mas da cor da pele, pois muitos questionaram se ela podia participar na emissão chinesa. Chegou a entrar nas provas de Xangai, a sua cidade natal, e na lista das 30 pessoas seleccionadas a nível nacional, mas não passou à fase seguinte.

Diz que não ficou surpreendida com a decisão do júri, mas com a reacção de milhares de cibernautas, a maior parte negativas e com conteúdo racista. “Não parei de chorar. Fiquei ofendida e nunca quis ofender ninguém”, disse à AFP. “Eu sou chinesa, mas quando li os comentários, até me questionei. Fiz perguntas que nunca tinha feito antes, comecei a reflectir sobre a minha diferença”, explica esta mulher, num mandarim perfeito.

Ainda que o Presidente Obama tenha uma forte popularidade na China e que a potência asiática tenha tornado mais estreitos os laços com África nos últimos anos, os ataques contra Lou Jing mostram a persistência do racismo num país onde a maioria da população é de etnia han.

“No mesmo ano em que os americanos acolheram Obama na Casa Branca, nós não podemos aceitar esta rapariga com uma cor diferente?” perguntou no seu blogue Hun Huang, uma diva da televisão chinesa.

Um comentador do China Daily referiu que este caso foi “racismo puro e simples” e adiantou: “Muitos desprezam os próprios compatriotas que têm a pele mais escura, em particular as mulheres. Os produtos de beleza para branquear a pele batem recordes. E as crianças são encorajadas a ter a pele mais clara”.

Lou diz que ganhou maturidade com esta experiência, mas, se pudesse voltar atrás, preferia não ter participado. Foi um dos professores na Escola de Artes Dramáticas de Xangai que a inscreveu, sem a avisar.

Lou continua a querer ser apresentadora de televisão, mas reconhece ter desfeito as dúvidas sobre as suas hipóteses de sucesso. “As televisões querem apresentadores que correspondam aos cânones de beleza”.

“Depois de ter estado na televisão, compreendi que não correspondo à imagem de uma apresentadora.”

Lou acredita que Obama terá a capacidade de mudar a imagem que as pessoas têm dos afro-americanos, mas duvida que consiga fazer o mesmo na China. “Não tenho essa capacidade de mudar as coisas e os media chineses são muito poderosos”. 

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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